Número 365 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 2 de novembro de 2016

poesia.net header

«Tuas palavras antigas / deixei-as todas, deixei-as, / junto com as minhas cantigas, / desenhadas nas areias.» (Cecília Meireles) *

facebook 

Marize Castro Marize Castro



Amigas e amigos,

“Sempre sofri. / Sempre tive febre. / Sempre estive inteira em todos os infernos. / Nunca quis ser abandonada. / Mas aprendi a perder. // O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados”.

Quem escreve versos assim, ao mesmo tempo fortes e plenos de sensibilidade lírica, merece no mínimo atenção. E toda a atenção deste boletim se volta para a autora destes versos, a poeta potiguar Marize Castro (Natal-RN, 1962).

Formada em comunicação social pela UFRN, Marize trabalha com jornalismo cultural. É também editora de livros e produz — com ressaltado esmero — as próprias obras, que saem pela Editora Una, de Natal.

Marize Castro estreou em livro com o volume Marrons Crepons Marfins, em 1984. Depois, já publicou mais cinco títulos: Rito (1993); Poço. Festim. Mosaico (1996); Esperado Ouro (2005); Lábios-Espelhos (2009) e Habitar Teu Nome (2011). Trata-se, portanto, de uma autora que já dispõe de encorpado cabedal poético.

•o•

Para compor uma pequena amostra do trabalho de Marize Castro, selecionei neste boletim um punhado de poemas, oito ao todo, extraídos de quatro dos seus livros.

Comecemos com três poemas de Habitar Teu Nome, a coletânea mais recente. Em “Esta Palavra”, a pessoa que fala consegue dialogar com a terra, a Natureza (“esta palavra a quem pertence? / perguntou-me a mais devastada esplanada”) e consome humanamente o próprio coração em estafantes trabalhos.

“Triste Rapaz” é um poema de amor, mas se desenvolve de modo muito especial e inusitado. A amante dirige-se ao parceiro e não lhe oferece nenhuma delícia. Promete dilúvios, e é uma criatura que se alimenta de “uivo, granizo, fel”. Mas, ao mesmo tempo, admite que ter dentro dela o “triste rapaz” corresponde ao que as pessoas “chamam de Céu”. 

No próximo poema, “Encontro Teresa”, a narradora — a voz de quem fala nos textos de Marize é, quase sempre, explicitamente feminina — se comunica com Teresa de Lisieux, a jovem francesa canonizada pela Igreja Católica como Santa Terezinha do Menino Jesus. Curiosamente, a mensagem lida nos olhos da santa não é bem o que se espera de um encontro dessa natureza: “não acredite / escolha sozinha / sua dor”. Marize Castro sempre encontra um jeito de frustrar a expectativa do senso comum.

Vem agora o poema “À Espera”, do livro Lábios-Espelhos. Numa casa onde nada se oculta, tudo se expõe às claras, uma mulher espera. Forte e decidida, sem ilusões. O próximo texto, “Pura Geometria”, pertence a Marrons Crepons Marfins, o livro de estreia da autora. É outro texto de amor e mostra que, desde muito cedo, a poeta não trafega por veredas previsíveis. No poema, isso se torna patente já nos primeiros versos: “Dos teus olhos / brotam lampejos de metáfora. // Não me espanto // Corro o risco / de delinear essa zona. // Pura geometria”.

Os três últimos poemas vêm do volume Esperado Ouro. Aí está “Inteira”, o poema que termina com os versos usados na abertura desta apresentação. Creio que não seja necessário dizer mais nada sobre ele.

“Erma” é outro texto bonito. Nele a autora é bem pessoal, falando do mar que há em seu nome. Por fim, “Néctar” apresenta, mais uma vez, uma espécie de profissão de fé mulheril. “Não sou a mulher que corta os pulsos e se joga da janela / nem aquela que abre o gás / nem mesmo a loba que entra no rio / com os bolsos cheios de pedra”.

Nestes versos há referências específicas a escritoras suicidas. A mulher do gás seria certamente a poeta norte-americana Sylvia Plath (1932-1963). A loba não pode ser outra senão a romancista britânica Virginia Woolf (1882-1941). Firme, ousada, a mulher do poema recusa-se peremptoriamente a ser qualquer uma dessas. Mas, para desconcerto do leitor, arremata: “Sou todas elas”.

A obra já desenvolvida pela poeta Marize Castro inscreve-a, sem a menor dúvida, entre as mais representativas da atual poesia brasileira. Lentamente, esse reconhecimento vem chegando, via resenhas e ensaios em publicações especializadas.

Soa, portanto, perfeitamente natural saber que o poeta Haroldo de Campos assim avaliou o trabalho de Marize: “Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia”.


Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



•o•


LANÇAMENTOS

Três eventos neste mês em São Paulo.

Falso Trajeto
• Fabio Weintraub

O poeta paulistano Fabio Weintraub lança seu novo livro, Falso Trajeto (Editora Patuá), uma antologia de poemas já publicados que também traz textos novos.

Quando:
Sábado, 05/11/2016,
as 15h às 18h00

Onde:
Patuscada Livraria, Bar Á Café
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena
São Paulo, SP



Anhangaçu - Nada Será Como Antes
• Leandro Carlos Esteves

O jornalista Leandro Esteves dá a público seu livro de contos Anhangaçu - Nada Será como Antes, publicado pela Dobradura Editorial.

Quando:
Terça-feira, 08/11/2016,
às 19h00

Onde:
Mercearia São Pedro
Rua Rodésia, 34
Vila Madalena
São Paulo, SP



No Chão da Fábrica – Contos e Novelas
• Roniwalter Jatobá

O escritor mineiro-baiano Roniwalter Jatobá comemora 40 anos de literatura com o lançamento de No Chão da Fábrica – Contos e Novelas, livro que reúne histórias centradas na classe operária. O livro sai pela Editora Nova Alexandria.

Quando:
Sexta-feira, 18/11/2016,
das 18h às 21h

Onde:
Casa das Rosas
Avenida Paulista, 37 - Metrô Brigadeiro
São Paulo, SP



•o•

Curta o poesia.net no Facebook:

facebook


•o•



Entre a beleza e a verdade

Marize Castro


 


Michele Del Campo - The illustrator - 2012
Michele Del Campo, pintor italiano, A ilustradora (2012)



ESTA PALAVRA

esta palavra a quem pertence?
perguntou-me a mais devastada esplanada

é minha, respondi

molhei a terra, adubei
sepultei sementes, desenhei lápides

perdi metade do meu coração

este é o aroma do fracasso, da dor, inspire
— asseverou

arbórea, peregrina, neblina afora
gritei: esta é a minha verdade

inaudita senhora




Michele Del Campo - Chinese girl reading - bench
Michele Del Campo, Moça chinesa lendo



TRISTE RAPAZ

triste rapaz, quando eu disser
não te amo mais

não acredite
sob meus pés
uma terra estrangeira move-se
um funeral anuncia-se

novamente sou líquida tempestade
estou de novo na primeira floresta
alimentando-me de uivo
granizo
fel

por isso, triste rapaz, quando eu disser
distancie-se
saiba que há um dilúvio
a galope

(este coração está por um triz)

mas também saiba
que te ter dentro de mim
é o que as pessoas neste imenso
mundo chamam
de Céu




Michele Del Campo - The pier - 2014
Michele Del Campo, O píer (2014)



ENCONTRO TERESA

encontro Teresa em Lisieux

fotografo seu jardim
filmo seu oratório
suas árvores
seu chão

olho em seus olhos
e eles dizem:
não acredite
escolha sozinha
sua dor


          De Habitar teu Nome (2011)




Michele Del Campo - Seaside walk - 2016
Michele Del Campo, Caminhada junto ao mar (2016)



À ESPERA

Porque nesta casa nada se oculta, eu te chamo.
Entre a vigília e o espelho, eu te espero.

Amo as palavras.
Por elas também virei homem.
Vi fúrias parindo fêmeas ávidas de linguagem.
Mulheres que deslizam.
Entregam-se. Desobedecem.
Dividem suas casas com os pássaros.
Mulheres que guardaram a senha:
fechar a porta a qualquer invasão.

Em silêncio, deixar cair
crucifixo, rosário, camafeu.

Nenhum véu. Nenhuma ilusão


          De Lábios-Espelhos (2009)




Michele Del Campo - Girl cigarette
Michele Del Campo, Moça com cigarro



PURA GEOMETRIA

Dos teus olhos
brotam lampejos de metáfora.

Não me espanto.

Corro o risco
de delinear essa zona.
Pura geometria.

Inevitavelmente pincelo teus labirintos
capturo tuas utopias.
Para tanta cumplicidade
não há mais limite.

Onde retomar o desejo?
Talvez reinventando o mistério
disperso na noite
peregrino de sexos, línguas e coxas.

Pensando em ti
às vezes de mim esqueço.

Retardo todos os regressos
e me limito
a sair do páreo, pela sombra.
Dualidade de quem jamais se encontra.


          De Marrons Crepons Marfins (1984)




Michele Del Campo - The bath - 2015
Michele Del Campo, O banho (2015)



INTEIRA

Iluminada por oráculos
alimento anjos com asas quebradas.

Não é de vendaval que eu preciso
mas da língua do amor guardada à beira-mar.

Não entendo de círios
mas de verões e sargaços bailarinos.

Acolhida pela província,
arrisco-me a enlaçar orquídeas em árvores.

Sempre sofri.
Sempre tive febre.
Sempre estive inteira em todos os infernos
Nunca quis ser abandonada.
Mas aprendi a perder.

O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados.




Michele Del Campo - The rest - 2014
Michele Del Campo, O descanso - detalhe (2014)



ERMA

Recolho-me tão profundamente
que tudo me alcança:
mísseis, desastres, lanças.

Recostada ao rosto de Deus
pedi-lhe a fé perdida
a palavra antiga — invencível.

Ele me deu o mar no nome
e uma fome borgiana, dizendo-me:
Eis sua herança, jovem senhora
de velhíssima alma e furiosas lembranças.




Michele Del Campo - The other girl - 2010
Michele Del Campo, A outra garota (2010)



NÉCTAR

A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.

Não sou a mulher
que corta os pulsos e se joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra no rio
com os bolsos cheios de pedra.

Sou todas elas.

Escrever me fez suportar todo incêndio
— toda quimera.


          De Esperado Ouro (2005)





poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


Marize Castro
     • "Esta Palavra", "Triste Rapaz" e "Encontro Teresa"
        in Habitar Teu Nome
        Una, Natal-RN, 2011
     • "À Espera"
        in Lábios-Espelhos
        Una, Natal-RN, 2009
      • "Inteira", "Erma" e "Néctar"
        in Esperado Ouro
        Una, Natal-RN, 2005
    • "Pura Geometria"
        in Marrons Crepons Marfins
        Clima/FJA, Natal-RN, 1984
 ______________
* Cecília Meireles (1901-1964), "Modinha", in Vaga Música (1942)
_______________
* Imagens: quadros de Michele Del Campo (1976-), pintor italiano radicado
  em Londres, que produz uma pintura fotorrealista marcadamente urbana