Número 378 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 7 de junho de 2017

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«O orvalho lava com a língua o rubro da romã.» (Lenilde Freitas) *

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Ruy Espinheira Filho
Ruy Espinheira Filho



Amigas e amigos,

De vez em quando, pego um livro de algum poeta consagrado e vou passeando pelas páginas. Fiz isso há alguns dias com a poesia reunida do baiano Ruy Espinheira Filho. A ideia original previa uma leitura sem compromisso, mas — vício de boletineiro — acabei destacando alguns poemas, e daí me veio a ideia deste boletim.

No final do périplo, notei que o título Julgado do Vento, de 1979, me despertou especial atenção, devido a seu profundo lirismo. Dos sete poemas transcritos ao lado, cinco vêm daquele livro, mais um de Memória da Chuva (1996) e o último de A Cidade e Os Sonhos (2003).

Minha leitura sem bússola nem roteiro foi feita nas páginas do livro Estação Infinita e Outras Estações — Poesia Reunida (1966-2012), volume que enfeixa treze títulos poéticos do autor. Publicada em 2012, essa reunião, se atualizada, já pode incorporar pelo menos três novos títulos: Noite Alta (2015), Milênios (2016) e Babilônia (2017).

Apesar dos títulos mais recentes, inclusive os contidos na própria reunião, este boletim representa uma incursão pelo passado da poesia espinheiriana. Por isso dei a esta edição o título “Canções de antes". Mas, de imediato, corrijo-me: a rigor, afora os aspectos documentais, pouco importa a data em que o poema foi escrito ou publicado. Conta, mesmo, é se ele nos diz alguma coisa agora. Portanto, sigamos.

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O primeiro texto da seleção é “Os bens maiores”. Aí temos o poeta no exercício de sua mais aguda sensibilidade. Mostra, na melhor lógica drummondiana, que “as coisas findas, / muito mais que lindas”, essas é que ficam. Vejamos o que diz Espinheira: “O que não foi / tocado é o que / deixou sua marca / mais nítida na mão”. E termina com esta bonita e verdadeira estrofe: “A gaiola vazia / é onde habita / o que há de mais belo / em gorjeio e pássaro.”

Vem a seguir o poema “Memória”. Aqui aparecem recordações da adolescência e a experiência pessoal com os ácidos do tempo. “Na sala, o silêncio. / No silêncio, ele, / o menino, sonha / seios, cães, perdizes.” Por causa desse desconsolado lirismo que olha para trás, Ruy Espinheira Filho já foi chamado de “o poeta da memória”. Mas ele (e não só ele: nomes como Jorge Luis Borges, José Saramago e muitos outros) insistem em dizer que nós, humanos, não possuímos senão isto: a memória.

Em “Notícia da Casa” o que se coloca em primeiro plano é a moradia dos primeiros anos. Trata-se de uma casa real (objeto inanimado com portas, janelas, salas e corredores) e de outra, mantida no íntimo do poeta. Daí a afirmação inicial: “A casa não se descreve: / sente-se”. Mais adiante, a confirmação de um ente abstrato que se mantém na memória e parece ter sempre mais ocupantes, enquanto o observador sangra “paredes e espaços”.

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No poema “Elegia”, o poeta, mais uma vez, submete a casa aos olhos de nossa imaginação: “Nesta sala os amigos mortos / estão bebendo a sua cerveja.” E termina de forma igualmente melancólica: “O olhar, turvo, passeia / pelo quintal, onde só há / a infância alheia / e o vento”. No poema “Rapto”, uma desconsolada descoberta. O menino — aquele garoto que guarda a casa na lembrança — descobre que tudo aquilo “que o ilumina” não existe em outro lugar, senão no “pó da casa morta”.

Saímos agora do livro Julgado do Vento. Em “Canção Depois de Tanto”, poema de Memória da Chuva, o que se celebra é a amizade e o conforto de contar com um ombro amigo para afogar as mágoas em qualquer coisa líquida. Mas o clima, embora mais denso, é o mesmo e traz referências à casa do menino: “Vamos beber qualquer coisa, / que a lua avança no mar / e há salobros fantasmas / que não quero visitar”.

No relato “A Suicida”, de A Cidade e Os Sonhos, surge um momento de cáustica ironia. A moça, vítima de uma brutal desilusão amorosa, tenta o suicídio ingerindo tinta para caneta-tinteiro, instrumento que as novas gerações já não conhecem.

Este boletineiro lembra-se muito bem de fazer provas no ginásio com sua caneta-tinteiro Pilot (que era um modelo barato, todos tinham uma) devidamente abastecida de tinta Parker Quink “azul real lavável”, como cita o poeta.

Ainda bem que o líquido destinado à escrita não era mortal. Para os mais jovens, é bom esclarecer: as canetas esferográficas só apareceram depois.


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Este não é o primeiro boletim de Ruy Espinheira Filho. O poeta já esteve aqui no poesia.net n. 18, de 2003, e também no n. 284, de 2012. Nascido em 1942 na capital baiana, Espinheira é escritor múltiplo.

Além de poesia, escreve romances, contos, crônicas e novelas e ensaios. Na área da ficção, sua publicação mais recente é o romance O Príncipe das Nuvens (Descaminhos, São Paulo, 2016).



Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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Canções de antes

• Ruy Espinheira Filho




itzchak tarkay- blue mood
Itzchak Tarkay, sérvio-israelense, Tristeza (2000)



OS BENS MAIORES

O que ficou
além do enlace
é o que mais foi
preso pelo gesto.

O que não foi
tocado é o que
deixou sua marca
mais nítida na mão.

A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.

      [de Julgado do Vento (1979)]




itzchak tarkay- quiet afternoon
Itzchak Tarkay, Tarde Tranquila



MEMÓRIA

Os seios adolescem
sob a blusa azul.
ao vento da tarde
doce de quintais.

À sombra, os cães
farejam as últimas
perdizes ocultas
no alto dos morros.

Na sala, o silêncio.
No silêncio, ele,
o menino, sonha
seios, cães, perdizes.

Sonha e é sonhado
ao fluir da história
que suave marulha
sempre sempre sempre

num país defeso
aquém/além do rosto
em que o tempo verte
seu lento vitríolo.

      [de Julgado do Vento (1979)]




itzchak tarkay- untitled watercolor
Itzchak Tarkay, Sem Título, aquarela



NOTÍCIA DA CASA

A casa não se descreve:
sente-se. Aqui permanecem
todos: dos que não vieram
àqueles que já partiram.

Na casa jamais se apaga
a luz com que me fitaste
(porém em ti, não: em ti
era só vidro, quebrou-se).

A casa se arquiteta
a si mesma, cada vez
mais habitada, enquanto
sangro paredes e espaços.

E cresce. Até não deixar
sinal no meu peito imóvel.

      [de Julgado do Vento (1979)]




itzchak tarkay- woman in awhite hat - 1990
Itzchak Tarkay, Mulher com Chapéu Branco (1990)



ELEGIA

Não abram esta janela.
Não afastem estas cortinas.
Nesta sala os amigos mortos
estão bebendo a sua cerveja.

Uma voz há muito perdida
(só os meus ouvidos a ouvem)
chama do fundo da infância
e eu me sinto sangrar.

Pousa uma garoa antiga
nos meus cabelos, e brilha.
A criança brinca com um martelo
que cai sobre o meu coração.

Tanta coisa silenciada!
O olhar, turvo, passeia
pelo quintal, onde só há
a infância alheia
                            e o vento.

      [de Julgado do Vento (1979)]




itzchak tarkay- Visiting friends
Itzchak Tarkay, Visitando amigas (2001)



RAPTO

Abriram a janela
alta e o dia
penetrou na sala.

O transfigurado
menino diante
da revelação.

Soprando nas telhas
um vento que gira
sóis e estrelas

carrega o menino
através do límpido
retângulo de luz

ao cerne do dia.
Mas que dia? Tudo
é outra coisa, e fria.

E o menino vê
que o que o ilumina
e aquece não

se encontra lá fora
— mas sepulto no
pó da casa morta.

      [de Julgado do Vento (1979)]




itzchak tarkay- Social club - 2006
Itzchak Tarkay, Clube social (2006)



CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO

                  a Roniwalter Jatobá


Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.

      [de Memória da Chuva (1996)]




itzchak tarkay- Gracious
Itzchak Tarkay, Charmosa



A SUICIDA

Quando atentou contra a vida
entristeceu a cidade.

Mais tolo e sério motivo:
um amor contrariado.

A comoção arrepiou
do comunista ao vigário.

Algumas vozes pesadas
arquitetaram vingança,

mas o caixeiro-viajante,
que jurara e perjurara,

já ia lépido e longe,
levando o sonho dos sonhos:

grinalda, véu, aliança,
padrinhos, padre, juiz

e marcha nupcial.
Pobre moça. Ainda bem

que o gesto tresloucado
não chegara a cumprir sua

sinistra finalidade,
embora tivesse havido

forte determinação
— tanto que ela bebera,

de uma só vez, todo um vidro
de tinta — para canetas —

Parker Quink. Felizmente,
de um azul claro, suave

e (o que por certo lhe
salvara a vida) lavável.

      [de A Cidade e os Sonhos (2003)]





poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017


Ruy Espinheira Filho
        • in Estação Infinita e Outras Estações
        — Poesia Reunida (1966-2012)

        Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2012
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* Lenilde Freitas, “A T.S. Eliot”, Tributos (1994)
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* Imagens: quadros de Itzchak Tarkay (1935-2012), pintor israelense
  nascido na Sérvia