Número 381 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 2017

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«Nasceram-me gaivotas nos sentidos» (Affonso Manta)

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Charles Simic
Charles Simic


Amigas e amigos,

O poeta sérvio-americano Charles Simic já apareceu aqui em duas outras oportunidades. A primeira foi no boletim n. 161, em maio de 2006. A outra, mais recente, se deu em novembro de 2014, na edição n. 322. Desta vez Charles Simic retorna numa configuração diferente. Este boletim é uma reedição daquele primeiro, ampliada e reestruturada.

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Nascido em Belgrado, Iugoslávia, em 1938, o poeta, tradutor e ensaísta americano Charles Simic mudou-se para Paris aos 15 anos. Em 1954, com a mãe e um irmão, transferiu-se para os Estados Unidos a fim de se juntar ao pai, que já residia lá.

Seus primeiros poemas foram publicados em 1959, mas sua estreia em livro deu-se em 1967, com o volume What The Grass Says (O que diz a relva). Professor de inglês, poeta consagrado, Simic ganhou o prêmio Pulitzer de 1990 com o livro The World Doesn't End (O mundo não se acaba). Como tradutor, publicou várias coletâneas de poemas vertidos para o inglês de idiomas como francês, sérvio, croata, macedônio e esloveno.

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A infância vivida nos duros anos da Segunda Guerra Mundial representou uma experiência marcante para Simic e certamente influencia até hoje seu trabalho poético. “Em 6 de abril de 1941, uma bomba caiu sobre um edifício bem em frente a minha casa. Lembro que me tirou da cama. É minha primeira recordação”, conta ele numa entrevista.

Um traço que a crítica costuma apontar na poesia de Simic são as imagens surrealistas, com a recorrência de termos como árvores, deuses, demônios e escuridão. No entanto, não há em seus versos as invenções delirantes dos surrealistas clássicos. Seus textos procuram extrair o que pode haver de absurdo ou fantástico nas coisas comuns.

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Um exemplo disso é dado pelo poema “The White Room” (O Quarto Branco), transcrito ao lado. Nele, Simic busca o transcendente naquilo que é óbvio e está ao alcance da mão. Mas o poeta recusa a ideia de deuses metamorfoseados em objetos do dia a dia: grampos de cabelo, pentes, espelhos de mão. Isso certamente não ajuda a entender o mundo.

O poema “The White Room” pertence ao volume The Book of Gods and Devils, de 1990. Desse mesmo livro de deuses e demônios extraí o poema “In The Library” (Na biblioteca). Amante dos livros, o poeta vê neles deuses e anjos amontoados que parecem sussurrar coisas — somente para os íntimos.

Numa entrevista concedida em 1972, Simic declara: “A poesia é órfã do silêncio. As palavras nunca correspondem exatamente à experiência que está por trás delas”. É como se o silêncio fosse um mundo ou uma dimensão perdida que a poesia procura resgatar.

Embora seja hoje uma das vozes mais originais e influentes na poesia americana, Simic não é conhecido no Brasil. Aqui, ninguém nunca se interessou em publicar uma antologia com poemas dele. A única iniciativa nesse sentido de que tenho notícia veio dos poetas Fabio Weintraub e Ricardo Rizzo, que traduziram e publicaram 16 poemas de Simic na extinta revista Cacto n. 3 (primavera de 2003). Rizzo também deu a público três outras traduções na também extinta revista Jandira n. 2 (outono de 2005).

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Nos dois boletins anteriores sobre a poesia de Simic, eu mesmo traduzi todos os poemas apresentados. “O Quarto Branco” e “Na Biblioteca”, reprisados aqui do boletim n. 161, foram os primeiros textos de Simic que traduzi. Depois, continuei a prestar atenção ao seu trabalho e fiz novas tentativas de colocá-lo em português.

Neste boletim acrescento dois outros poemas, “Butcher Shop” (Açougue) e “Cabbage” (Repolho). Nos dois mantêm-se as características discutidas acima. O poeta parte de cenas triviais e delas desentranha situações no mínimo excêntricas.

No poema “Açougue”, o narrador para, à noite, diante de um açougue fechado. Descreve o que vê e acrescenta comentários muito pessoais. Em “Repolho”, a cena é doméstica. Marido e mulher estão na cozinha e o poema começa quando ela se prepara para cortar ao meio uma cabeça da verdura-título. O marido-narrador a interrompe e daí salta para o socialista francês Charles Fourier (1772-1837), passando por intimidades do casal.

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Conforme se vê, a poesia de Charles Simic é surrealista, ou “absurdista”, apenas naquilo que a realidade comum pode ter de estranho e absurdo.

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTOS

Uma biografia, em São Paulo, e nova coletânea de poemas, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Ruy Guerra: Paixão Escancarada
• Vavy Pacheco Borges

Ruy GuerraApós um trabalho de pesquisa de dez anos, a professora e historiadora Vavy Pacheco Borges (PUC, Unicamp) lança a biografia Ruy Guerra: Paixão Escancarada, que conta a trajetória do cineasta moçambicano-brasileiro, diretor de filmes como Os Cafajestes (1962), Os Fuzis (1964), Ópera do Malandro (1986) e Estorvo (2000). O biografado, Ruy Guerra, tem agora 85 anos. O livro sai pela Editora Boitempo.

Quando:
Terça-feira, 08/08/2017, às 18h30

Onde:
Livraria da Vila
Alameda Lorena, 1731 - Jardim Paulista
São Paulo, SP


Antologia Poetrix 5
• Goulart Gomes (org.)

Poetrix 5O poeta baiano Goulart Gomes (org.) lança a obra coletiva Antologia Poetrix 5. Poetrix, para quem não sabe, é um poemeto de três versos, estrutura criada por Goulart Gomes e adotada por muitos poetas, como prova a antologia. São dois lançamentos.

NO RIO DE JANEIRO

Quando:
Sexta-feira, 11/08/2017,
das 18h às 21h

Onde:
Livraria Cultura
Rua Senador Dantas, 45 - mezanino - Centro
Rio de Janeiro, RJ


EM SÃO PAULO

Quando:
Sábado, 12/08/2017,
das 17h30 às 20h30

Onde:
Espaço Scortecci
Rua Deputado Lacerda Franco, 96 - Pinheiros
São Paulo, SP



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A dimensão do silêncio

• Charles Simic


              Tradução: Carlos Machado




Armando Barrios - Adagio-1989
Armando Barrios, venezuelano, Adágio (1989)



O QUARTO BRANCO

O óbvio é difícil de
provar. Muitos preferem
o oculto. Eu também preferia.
Eu escutava as árvores.

Elas guardavam um segredo
que estavam prestes
a me revelar —
e não o fizeram.

Veio o verão. Cada árvore
de minha rua tinha sua própria
Xerazade. Minhas noites
faziam parte de suas histórias

selvagens. Entrávamos
em casas escuras,
casas sempre mais escuras,
silenciosas e abandonadas.

Havia alguém de olhos fechados
nos pisos superiores.
O medo e o fascínio me
mantinham bem desperto.

A verdade é nua e crua,
disse a mulher
que sempre se vestiu de branco.
Ela não saiu muito de seu quarto.

O sol apontava uma ou duas
coisas que tinham sobrevivido
intactas na longa noite.
As coisas mais simples,

difíceis em sua obviedade.
Essas não faziam barulho.
Era um dia do tipo
que as pessoas chamam “perfeito”.

Deuses disfarçados de
grampos de cabelo, espelho de mão,
um pente com um dente faltando?
Não! Não era isso.

Apenas as coisas como são,
mudas, imóveis, sem piscar,
naquela luz brilhante —
e as árvores esperando a noite.

    Tradução: Carlos Machado


THE WHITE ROOM

The obvious is difficult
To prove. Many prefer
The hidden. I did, too.
I listened to the trees.

They had a secret
Which they were about to
Make known to me —
And then didn't.

Summer came. Each tree
On my street had its own
Scheherazade. My nights
Were a part of their wild

Storytelling. We were
Entering dark houses,
Always more dark houses,
Hushed and abandoned.

There was someone with eyes closed
On the upper floors.
The fear of it, and the wonder,
Kept me sleepless.

The truth is bald and cold,
Said the woman
Who always wore white.
She didn't leave her room much.

The sun pointed to one or two
Things that had survived
The long night intact.
The simplest things,

Difficult in their obviousness.
They made no noise.
It was the kind of day
People described as “perfect.”

Gods disguising themselves
As black hairpins, a hand-mirror,
A comb with a tooth missing?
No! That wasn't it.

Just things as they are,
Unblinking, lying mute
In that bright light —
And the trees waiting for the night.




Armando Barrios - Epílogo - 1993
Armando Barrios, Epílogo (1993)



NA BIBLIOTECA

       Para Octavio

Há um livro chamado
Dicionário de Anjos.
Ninguém o abrira em cinquenta anos.
Eu sei, porque quando o abri
as capas rangeram, as páginas
se esmigalharam. Ali descobri

que os anjos já foram tão numerosos
como espécies de moscas.
O céu ao entardecer
ficava coalhado deles.
Era preciso agitar os braços
para mantê-los a distância.

Agora o sol brilha
através das altas janelas.
A biblioteca é um lugar tranquilo.
Anjos e deuses se amontoam
em livros escuros não-abertos.
O grande segredo repousa
em alguma estante, junto à qual
a srta. Jones passa
em suas rondas diárias.

Ela é muito alta e mantém
a cabeça inclinada como se escutasse.
Os livros estão sussurrando.
Não ouço nada, mas ela sim.

    Tradução: Carlos Machado


IN THE LIBRARY

       For Octavio

There's a book called
A Dictionary of Angels.
No one had opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered

The angels were once as plentiful
As species of flies.
The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.

Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.

She's very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.


A VOZ DO POETA
Ouça Charles Simic lendo o poema “In The Library”






Armando Barrios - Afinidad Cromática - 1990
Armando Barrios, Afinidade Cromática (1990)



AÇOUGUE

Às vezes caminhando à noite paro
diante de um açougue fechado.
Há apenas uma luz acesa como aquela
com que o prisioneiro cava seu túnel.

No gancho, pende um avental:
nele, o sangue desenhou um mapa
dos grandes continentes de sangue,
os grandes rios e oceanos de sangue.

Há facas que reluzem como altares
numa igreja escura
aonde levam os coxos e os idiotas
para serem curados.

Há um cepo onde os ossos são quebrados
e limpos — um rio completamente seco
onde me alimento,
onde no fundo da noite escuto uma voz.

    Tradução: Carlos Machado


BUTCHER SHOP

Sometimes walking late at night
I stop before a closed butcher shop
There is a single light in the store
Like the light in which the convict digs his tunnel.

An apron hangs on the hook:
The blood on it smeared into a map
Of the great continents of blood,
The great rivers and oceans of blood.

There are knives that glitter like altars
In a dark church
Where they bring the cripple and the imbecile
To be healed.

There is a wooden block where bones are broken,
Scraped clean — a river dried to its bed
Where I am fed,
Where deep in the night I hear a voice.




Armando Barrios - Cantoria
Armando Barrios, Cantoria (1993)



REPOLHO

Ela estava prestes a cortar a cabeça
ao meio.
Mas eu a fiz reconsiderar
dizendo:
“O repolho simboliza o amor misterioso”.

Asssim falou um certo Charles Fourier,
que disse muitas outras coisas estranhas e maravilhosas,
tanto que, pelas costas, as pessoas o tachavam de louco.

Foi então que beijei o pescoço dela
muito suavemente.

Foi então que ela cortou o repolho em dois
com um só golpe de sua faca.

    Tradução: Carlos Machado


CABBAGE

She was about to chop the head
In half,
But I made her reconsider
By telling her:
“Cabbage symbolizes mysterious love.”

Or so said one Charles Fourier,
Who said many other strange and wonderful things,
So that people railed him mad behind his back,

Whereupon I kissed the back of her neck
Ever so gently,

Whereupon she cut the cabbage in two
With a single stroke of her knife.





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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017



Charles Simic
  •  "The White Room", "In The Library"
  in The Book of Gods and Devils
  E Harcourt Brace & Company, New York, 1990

  •  "Butcher Shop", "Cabbage"
  in New and Selected Poems (1962-2012)
  Houghton Mifflin Harcourt, New York, 2013
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* Affonso Manta, "O Aprendiz", in Antologia Poética (2013)
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* Imagens: quadros de Armando Barrios (1920-1999), pintor venezuelano.