Número 387 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2017

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«... o mundo é só / um grão de pó sobre o espelho / do sim.» (Antonio Brasileiro)

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Carlos Felipe Moisés
Carlos Felipe Moisés



Amigas e amigos,

O poeta, tradutor e crítico literário paulistano Carlos Felipe Moisés (1942-2017) estava na lista de futuros boletináveis do poesia.net desde o lançamento de seu Dádiva Devolvida – Poemas Escolhidos (2016). Adquiri o livro no início deste ano. Li os poemas, marquei alguns para o boletim.

Contudo, meu processo foi demasiado lento, e a indesejada das gentes chegou primeiro: sem aviso, levou o poeta em agosto último. Assim, este boletim transformou-se inapelavelmente numa homenagem póstuma.

•o•

Carlos Felipe Moisés desenvolveu uma longa e profícua atividade literária. Em 1961 começou a colaborar no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, escrevendo artigos e resenhas. No ano seguinte, entrou no curso de letras da USP, onde se graduou e também fez o mestrado e o doutorado. Professor universitário, lecionou na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto (SP), na PUC-SP e também na USP.

Como crítico, Carlos Felipe publicou numerosos livros, dedicados principalmente à análise da poesia moderna e contemporânea. Seus trabalhos mais recentes foram Frente & Verso – Sobre Poesia e Poética (2013), Tradição e Ruptura (2012) e Balaio: Alguns Poetas da Geração 60 (2012).

Como poeta, estreou em 1960, com o livro A Poliflauta, ao qual, ao longo dos anos, seguiram-se várias outras coletâneas. As mais recentes foram Disjecta Membra (2014) e Noite Nula (2008). No já citado Dádiva Devolvida, de 2016, o poeta organizou uma antologia com poemas de toda a sua trajetória.

Todos os textos da seleção ao lado foram extraídos dessa antologia.

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O primeiro poema de nossa seleção é “Um Copo Sobre a Mesa”. Publicado no livro Disjecta Membra (2014), esse poema exibe um momento da refinada sensibilidade do poeta. Em resumo, o sujeito lírico diz que, ao curvar-se para pegar um copo sobre a mesa, foi assaltado por lembranças íntimas, quase eróticas. Diante da emoção, ele próprio se espanta: “como pode um simples / copo sobre a mesa / abrigar, vadia, tanta luz?”

O poema seguinte, “Desenho” (do livro Lição de Casa, 1998), é outro exemplo de leveza e refinamento. Aqui, a poesia se equilibra com apoio da imaginação visual. O desafio é tentar pintar ou esculpir uma figura contando com a inabilidade de um não artista. A solução parece vir com os devaneios do poeta, que afinal faz o pássaro — o objeto a ser desenhado — vir pousar em sua mão.

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O poema “Carrego as Estações” provém, originalmente, do livro Círculo Imperfeito (1978). Neste texto de lirismo bucólico, o poeta reflete sobre nossa relação com o passar do tempo. “Pasto de segredos, / mescla de memória e desejo, / meu corpo caminha com a chuva”... E no fim o que sobra de nós vai parar num mar onde nos espera a memória.

“Clima”, o próximo poema, é mais sucinto. Compara áreas de extremo rigor climático do planeta (desertos, geleiras) com a desconhecida região onde ferve “a lava hibernada / das paixões extintas”.

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No poema “Carpe Diem”, Carlos Felipe Moisés assume um diálogo com o heterônimo pessoano Ricardo Reis. No texto, assim como nas odes de Ricardo Reis, os pensamentos são dirigidos a uma interlocutora de nome Lídia. A sintaxe é a mesma de Reis. Até o verso “Abandona de vez essas volucres (Lídia) rosas / e deixa-as fanar” é similar à interrupção parentética da frase no poema de Reis onde aparece o termo “volucres”.

Conforme o dicionário, “volucre” é variante de “vólucre” e significa efêmero, transitório, que tem vida curta — palavra perfeitamente aplicada às rosas. O texto de Ricardo Reis é: “As rosas amo dos jardins de Adônis, / Essas volucres amo, Lídia, rosas, / Que em o dia em que nascem, / Em esse dia morrem”.

Há também uma reacomodação da ode ao contexto brasileiro. Ricardo Reis diz: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. Carlos Felipe, amazonicamente, convida: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do igarapé”. Ele também destoa de Reis em mais de um trecho, e especialmente quando reclama: “Vem, Lídia, vem e esquece / as mãos que o diabo do Reis desenlaçou. / De que te serve a lembrança do que não foi?”.

Se, aos olhos de Reis, a relação com Lídia é platônica, apenas motivo para filosofar, Carlos Felipe, ao contrário, acredita que é possível aproveitar o dia. Traz até para o enredo a presença dos “fogosos pavões vermelhos / do baiano poeta Sosígenes”, uma referência a Sosígenes Costa (1901-1968). Aliás, o pavão vermelho de Sosígenes corresponde exatamente à alegria, sentimento que também é estranho ao modo taciturno de Reis.

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O poema “Manuel/Manoel” configura uma homenagem aos dois grandes Manu(o)éis da poesia brasileira: o pernambucano Bandeira, com U, e o mato-grossense de Barros, com O. Por fim, vem “Não eras mais”, um bonito poema dedicado a um garoto de nome Rodrigo que viveu apenas cinco ou seis anos, talvez algum parente ou amigo do poeta.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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No mar da memória

• Carlos Felipe Moisés




Ruud van Empel - Mood n. 5 - 2016
Marcos Beccari, artista paulistano, aquarela



UM COPO SOBRE A MESA

Pode ter sido só
o ranger da cadeira
    mas eu ouvi
    ouvi mais
    ouvi menos do que isso
    ouvi o arfante farfalhar
    de uma lembrança
    um gemido
    um ai!
    umas luzes falantes
quando me arqueei
na direção do copo sobre a mesa.

Curiosa a insistência dessa
inútil
cantabile melodia — a lembrar:
    uma cadeira que range um
    sorriso ofegante (pode ser)
    uns olhos claros
— ou foram
    os cabelos os lábios a testa
    iluminada?

Pode ter sido o antegozo
do primeiro gole ou a surpresa
    (não sei
    mas eu ouvi
    ouvi mais
    ouvi menos do que isso
    ouvi um sorriso uns braços um
    ai! uns seios nus)

: como pode um simples
copo sobre a mesa
abrigar, vadia, tanta luz?

Vontade de pedir: vem
beber comigo! (Este primeiro
gole foi promissor.)

       De Disjecta Membra (2014)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



DESENHO

A mão inábil
o olhar rendido
à magia das cores:
    pastel
    aquarela
    guache
    giz de cera.
Desenhar figuras
recortar na folha em branco
o nunca visto.

    Pour faire
    le portrait
    d’un oiseau
o olhar escultor
imagina a gaiola
    sem porta
    sem grades
    sem nada
e o pássaro vem
bicar-lhe a mão
    no azul
da madrugada.

       De Lição de Casa (1998)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



CARREGO AS ESTAÇÕES

Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso esquerdo um riacho murmura.)
Ali onde pequenas pedras se acumulam
uma canção exala seu vapor
depois se perde.
Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte o seu perfume
e um vento ignorado agita as suas asas.

Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo)
à procura do sonho de uma nuvem fria.

Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.

Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés roídos pela terra penduro numa árvore,
o tronco multiplico em cem pedaços:
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.

E pois que carrego as estações comigo
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.

       De Círculo Imperfeito (1978)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



CLIMA

a zona mais seca
o deserto de atacama
na cordilheira dos andes

a mais quente
o deserto de lut
que ninguém sabe onde

a mais fria
um nome impossível
de pronunciar

é onde
a lava hibernada
das paixões extintas.

       De Lição de Casa (1998)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



CARPE DIEM

    para Lídia Jorge

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do igarapé.
Esquece o frio rio do Reis e vem e traz
um dos teus guarda-chuvas cintilantes
para te protegeres não das águas
mas do cavalo de sol que esbraveja
e espalha por toda parte
essa parafernália de guizos ardentes.

O calor tropical te assusta?
Ah, o ardor de mil araras te bicará o peito (
Lídia!) com gumes de aço
             mas
nada que te fira ou arda mais que ficares
aí a apascentar o frio e o silêncio
: pagã triste & com flores no regaço.

Já te vejo os cabelos emaranhados no cipoal
e aranhas no encalço do coração em chamas.
Teus sonhos explodem no ar
e um exército de formigas guerreiras
pulveriza em teus olhos a memória do rio-Mar.

Sei : não és senão paisagem com mulher e mar ao fundo.
Mas
  agora
o sol alucinado galopa em tuas praias.

Vem, Lídia, vem e esquece
as mãos que o diabo do Reis desenlaçou.
De que te serve a lembrança do que não foi?

Para que a hora não peque (afinal
não chegaste a enlaçar coisa alguma)
é preciso que o sol esbraseie a noite
    que te encharca a alma
e a converta num só   um só dia de glória
esse dia em cujo olho passeia à tua espera
    quem sabe à tua revelia
um dos fogosos pavões vermelhos
do baiano poeta Sosígenes.

Abandona de vez essas volucres (Lídia) rosas
e deixa-as fanar
        não no regaço teu
mas no de quem as inventou para o abandono.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do igarapé
como quem se senta rente ao precipício.
Mas vem depressa.
         O dia
o dia dos prodígios
é só um dia e não tarda e virá (aí vem!)
cavalgando o dorso do solstício de dezembro.

       De Subsolo (1989)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



MANUEL/MANOEL

O de Barros
tem um rio
indo embora de andorinhas.
O outro
pegou numa
      e pôs-se
a espreitar as águas
à toa
à toa
à toa.

(Quem me dera
uma gota, uma só
dessa água sobeja,
pra ver se espanto
este grilo
que rumoreja
e estala
    qual açoite
na boca da noite.)

       De Lição de Casa (1998)



Marcos Beccari - aquarela
Marcos Beccari, aquarela



NÃO ERAS MAIS

    para Rodrigo (1969-1975)


Não eras mais que um sorriso
e o ar que serenava quando te movias.
Tomo tuas mãos em minhas mãos
e peço que me ensines esse ar, o sorriso,
a serenidade que desconhecias.

Mas tu não dizes mais que o teu sorriso
e o claro olhar, irmão das águas.
Tomo teu corpo em minhas mãos
(raio de sol) e tenho em meus olhos
a mágoa de todas as mágoas.

Vagueio meu olhar além dos montes
(murmúrio de pássaros entretidos) e te diviso,
brilho liberto de todas as sombras,
a ensinar aos pássaros, como me ensinaste,
o teu sorriso.

       De Círculo Imperfeito (1978)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017



Carlos Felipe Moisés
•  in Dádiva Devolvida - Poemas Escolhidos
    Lumme Editor, São Paulo, 2016
______________
* Antonio Brasileiro, "O Cavaleiro", in Dedal de Areia (2006)
______________
* Imagens: aquarelas do paulistano Marcos Beccari, artista plástico
  e professor da Universidade Federal do Paraná