Número 396 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 4 de abril de 2018

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«As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue.» (António Ramos Rosa) *

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Florisvaldo Mattos
Florisvaldo Mattos



Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.net  traz a esta página pela terceira vez o jornalista, professor e poeta baiano Florisvaldo Mattos. Este autor já esteve aqui nas edições n. 85 e n. 281.

O retorno do poeta ao boletim se justifica por pelo menos dois motivos fortes. O primeiro é o recente lançamento de sua Antologia Poética e Inéditos (2017). O outro, uma efeméride pessoal: o poeta, nesta semana, completa bem vividos 86 anos.

No segundo boletim dedicado ao poeta, assim caracterizei sua obra: “Praticante de um lirismo marcado por influências clássicas, Florisvaldo Mattos cultiva o gosto pelo verso medido — especialmente o decassílabo — e exibe em seu acervo um bom punhado de sonetos primorosos”.

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Nesta edição destaquei aspectos líricos diferentes dos abordados nas duas anteriores. Por isso, se você quiser conhecer outras facetas dos escritos de Florisvaldo Mattos, convido a amiga leitora, o amigo leitor a visitar os outros dois boletins dedicados ao poeta: n. 85 e n. 281

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Para este boletim, escolhi um punhado de poemas da recente Antologia. Para começar, o soneto “Dias de 1942 (na mata)”, no qual o poeta registra como recebia, pelo rádio, no interior da Bahia, aos 10 anos de idade, as notícias da Segunda Grande Guerra, na Europa. Há soldados, tanques e combates na Bavária, mas ali perto, à luz dos vaga-lumes, “o silêncio da mata (...) / amortece o eco das calamidades”.

O poema seguinte é outro soneto, também ambientado em Água Preta, atual Uruçuca, terra natal do autor. O poeta, neste texto, parece relembrar o momento em que teve de abandonar o ninho para ir estudar em cidade maior. “Na Rua do Apertucho, com tristeza, / me despeço de mim, dos meus amigos.”

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Nas quadras de “Duas Almas”, Florisvaldo Mattos traça paralelos entre a vida e a obra de dois grandes poetas do século XX: o grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933) e o britânico W.H. Auden (1907-1973). O poeta baiano considera as “maldições e hipocrisias” que os dois bardos de além-mar sofreram pelo fato de serem homossexuais. “Irmãos de alma e desejo interditado. / A sombra de ambos pelos portos vaga. / Adentra alcovas cujos balcões se abrem / para oásis de prazeres e jardins.”

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Encerro esta pequena antologia com o texto “A Edição Matutina”, dedicado ao cineasta Glauber Rocha (1939-1981), seu amigo e colega de jornalismo. Publicado originalmente no livro A Caligrafia do Soluço (1996), trata-se de uma ode longa, que se estende por cinco páginas. Transcrevo aqui apenas dois trechos, correspondentes ao início e ao fim do poema.

Não tenho ideia de quando o poeta escreveu essa ode em homenagem ao amigo. Suponho, no entanto, que deve ter sido escrita sob o impacto da morte do cineasta e ex-colega, ainda no período da ditadura militar. “Nada sei além do que me contam / os hebdomadários perseguidos / os diários desaparecidos / os livros burocraticamente censurados / os discursos jamais pronunciados”.

O segundo trecho transcrito faz explícita referência à morte do cineasta. “Morreu o Chefe de Reportagem / E ficamos todos tristes”. Neste poema, "A Edição Matutina", Florisvaldo Mattos combina com maestria a tristeza pela perda do amigo e destacado inovador da sétima arte, sua experiência de jornalista e o ambiente sufocante marcado pela censura à imprensa e às artes, tudo isso em meio às perseguições, prisões e assassinatos de opositores políticos.

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Natural de Uruçuca, no sul baiano, Florisvaldo Mattos (1932-) formou-se em direito na Universidade Federal da Bahia, mas optou pelo jornalismo. Nos anos 60, fez parte do grupo nuclear da chamada Geração Mapa, artistas que se reuniam em torno da revista Mapa, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. Seu livro de estreia, Reverdor, saiu em 1965. Em seguida, publicou Fábula Civil (1975); e A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996). Sua Antologia Poética e Inéditos, de 2017, foi antecedida pelo volume Poesia Reunida e Inéditos (Escrituras, 2011).


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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À luz dos vaga-lumes

• Florisvaldo Mattos


              



Vicente Romero Redondo - Pastel
Vicente Romero Redondo, pintor espanhol, Pastel


DIAS DE 1942 (NA MATA)

    Ao tio José Mattos, in memoriam

Na sala familiar, à luz sombria
do candeeiro, a mulher cose; o homem ouve
o rádio a urrar, na noite que prospera.
Horrores de longínquo drama. Horrores.

“Há soldados e tanques na Bavária”.
Anuncia o locutor de voz possante.
O pai rumina fainas de comércio;
preso ao chão, o olhar pastoreia números.

Lá fora pisca: é luz de vaga-lumes.
De dentro acaso espio a noite vasta,
que convida a sonhar com um novo dia.

O silêncio da mata abraça as árvores
e amortece o eco das calamidades,
enquanto escuto a voz de Orlando Silva.



Vicente Romero Redondo - Pastel
Vicente Romero Redondo, Pastel


ÁGUA PRETA

Água Preta: debruço-me na ponte,
olho o rio que sangra minha infância;
me despeço de mim — lá, do que fui,
do que somente fui, não mais serei.

Na Rua do Apertucho, com tristeza,
me despeço de mim, dos meus amigos.
Imperceptível traço do destino,
com palavras escritas nas paredes,

resiste na água quieta (minha tia
Dasdores, debruçada na janela,
olha a chuva batendo nos gramados).

Do necessário roxo dos telhados
desce o gado manso do tempo, rumo
ao fundo do rio chifrando ausências.



Vicente Romero Redondo - Mini
Vicente Romero Redondo, Mini


DUAS ALMAS

Quando Auden nasceu, já Kaváfis ia
por botequins à caça de mancebos.
Na gelada York. O sol fulgia lépido.
Tanto quanto o farol de Alexandria.

Quando morreu Kaváfis, Auden já
deixara o áspero barro de Inglaterra.
Por desgosto, por dor, talvez vergonha
de insano amor sujeito a controvérsia.

História e erotismo a ambos deram chão
de sentir e veraz profundidade.
Nada lhes obsta o ardor de transgredir.
De afrontar maldições, hipocrisias.

Irmãos de alma e desejo interditado.
A sombra de ambos pelos portos vaga.
Adentra alcovas cujos balcões se abrem
para oásis de prazeres e jardins.

Espelho de iguais em duas idades.
Se neste um se mira, logo o outro põe
no lume de cristal que reverbera
douto narciso de modernidades.

É límpido o que a face do cristal
reflete, igual à líquida de um rio:
um — rei do Egito, o cinto de ametista;
o outro, a túnica sépia de milícia.

Dupla tenaz que para o mundo ostenta
a aura sábia de seres desertados.
Kaváfis, Auden: um, dois séculos viu;
o outro, só um — de horror, tormento e guerra.

Ambos hoje nos parques de jacintos
unidos vão, espíritos de mãos
dadas, que ao chão da vida mais importam
sonho e amor nas pegadas da beleza.



Vicente Romero Redondo - Pastel
Vicente Romero Redondo, Pastel


A EDIÇÃO MATUTINA

    À memória de Glauber Rocha,
    artista, amigo e companheiro de jornal


Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados

Muito
   de dor enclausurada
   de raiva contida
   de memória desesperada
Muito
   de petrificado esterco
   de martírio indevassado
   fel de carcomida flor

Como em toda experiência humana
como em toda verdade proclamada
há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas

(...)


Nada sei além do que me contam
furiosas páginas dos diários mudos

Morreu o Chefe de Reportagem
    E ficamos todos tristes
A penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina é densa e os automóveis
entram em choque de faróis apagados
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)

Oue comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Oue enumere os chopes de todos os botequins
Oue reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Oue forneça o mais seguro boletim meteorológico
Oue informe o que se passa nos cinemas
Oue esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Oue estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Oue abra os corações aos ritos do candomblé
Oue dê verso às canções dos trios-elétricos
Oue vista a mortalha dos foliões de todos os dias
Oue prepare o espírito de todos para o Carnaval

E assim seguindo apenas
o curso luminoso
de cada signo morto
perfurando o arenoso
das páginas desertas
bobinas de horror
manchas de tinta fresca
chumbo e insone rastro
chorarei então
por entre os escombros
da edição matutina.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



Florisvaldo Mattos
•  in Antologia Poética e Inéditos
    (organização do autor)
    Assembleia Legilslativa-BA/ALBA, Salvador, 2017
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* António Ramos Rosa, no livro Círculo Aberto (1979)
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* Imagens: obras de Vicente Romero Redondo (1956-), pintor espanhol