Número 399 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2018

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«Nasceram-me gaivotas nos sentidos.» (Affonso Manta) *

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Alberto da Cunha Melo
Alberto da Cunha Melo



Amigas e amigos,

O poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) já esteve aqui no poesia.net há cerca de onze anos. Ele foi destacado na edição n. 195, em fevereiro de 2007. Infelizmente, nesse mesmo ano, Cunha Melo partiria em definitivo para o país da memória.

O primeiro boletim baseado na poesia dele tomou como referência dois de seus livros: Soma dos Sumos (1983) e Dois Caminhos e Uma Oração (2003). Agora, esta revisitação ocorre após o lançamento de sua Poesia Completa (Record, 2017), alentado volume com 1000 páginas, organizado pela viúva do poeta, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo. Trabalho minucioso, o volume abriga todos os títulos publicados, mais uma copiosa produção inédita.

Portanto, esta edição do boletim bebe no vasto oceano da poesia completa de Alberto da Cunha Melo. Com óbvia dificuldade, selecionei um punhado de poemas, procurando não repetir outros já mostrados no primeiro boletim.

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Quem parar um pouco para analisar o trabalho de Alberto da Cunha Melo logo notará que o poeta, embora também se expresse em versos livres, praticamente especializou-se no octossílabo, metro antes cultivado pela carioca Cecília Meireles e também pelo pernambucano João Cabral de Melo Neto. Substancial parcela dos poemas de Cunha Melo vem vazada nesses versos.

Menos “automático” que o setissílabo — base tradicional da poética popular em espanhol e em português —, o verso de oito sílabas pode ser ingrato para quem não dispõe de destreza para torná-lo maleável e musical. Cunha Melo não só conseguiu dominá-lo como o transformou em sua medida-padrão. Dos sete poemas transcritos ao lado, observe-se que apenas o último não se baseia em octossílabos.

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Passemos à leitura dos poemas. O primeiro da seleção é “1. Publicação do Corpo”, que apareceu originalmente no livro Círculo Cósmico (1966). Nele o poeta empreende uma viagem contrária ao procedimento habitual. Em geral, fala-se em transcendência, partindo do corpo para a alma. Aqui, a pessoa que fala promete sair das altas nuvens, onde sempre habitou, e descer para a cidade. O objetivo é tornar público o corpo, não as nuvens. “Só meu corpo sabe virar / todas as páginas do tempo”, diz o poeta.

O poema seguinte, “4. Asteriscos”, vem da mesma fonte, o livro Círculo Cósmico, e mantém certo parentesco lógico com o anterior. O poeta insiste na ideia de que o corpo é o verdadeiro testemunho das dores sofridas pelo indivíduo. Mas agora, além de afirmar o corpo, ele deixa o poema — outra prova material da existência.

Ainda do livro Círculo Cósmico, o poema “17. Hora de Voar” reafirma a ideia de corporeidade da criação poética apresentada nos dois poemas anteriores. Em meio a outras considerações, o poeta flagra um conflito interessante. De um lado, “o poema, depois de pronto, / quer-se mostrar, como as crianças”. De outro, o poeta declara que o “grande pudor de mostrar o poema” o salva na Terra. E mais: o poema é “como se fosse uma das partes / mais vergonhosas do meu corpo”. Mais uma vez, o poeta trafega na contramão do idealismo romântico, que atribui ao objeto artístico identidade com a alma de seu criador.

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O texto intitulado como “XXVI” vem de outro livro, Oração pelo Poema, de 1969. O poeta começa com uma metáfora perigosíssima: soltar a direção do automóvel “para escrever alguma coisa / mais urgente que minha vida”. Supõe-se a urgência e a importância de escrever para o poeta. Ao mesmo tempo, ele enfrenta as limitações impostas pela vida moderna: “é proibido / amar, fumar, pisar na grama”. Apesar de tudo, ele insiste e implora: “Ó meu Deus, eu quero escrever /a minha vida, não teu Céu”. Mais uma vez, o poeta decide relacionar-se com o corpo, as coisas do chão, e não com as formulações etéreas.

Vem a seguir um texto do volume Poemas Anteriores (1989). Agora, o poeta discorre sobre uma marca de metralhadoras, a Thompson. Segundo a Wikipédia, trata-se na verdade de uma submetralhadora ou pistola-metralhadora (não procurei saber qual a diferença), muito usada nos EUA tanto entre policiais como entre mafiosos e gângsteres, inclusive Al Capone.

Identificada a arma, voltemos ao poema. Para o poeta, a metralhadora, “Pesada como uma criança / gorda, filha do fabricante, / não para de gritar enquanto / não devora o pente de balas”. O tom é sempre de cáustica ironia. Lembra, por exemplo, que o famoso marginal carioca Mineirinho “morreu com ela”, a Thompson (em 1962). Elevar esse instrumento mortífero a tema de poesia constitui um dos estalos geniais de Alberto da Cunha Melo.

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O poema a seguir, “Formas de Abençoar”, extraído do livro O Cão Amarelo e Outros Poemas (2006). Neste caso, quem fala é um pai dando conselhos ao filho. Lembra que “há uma mentira por aí / chamada infância”. E avisa que a infância só é tolerada enquanto dura. Depois, não há mais tolerância nem perdão: “Somos treva, a vida é apenas / puro lampejo do carvão”. O leitor pode escolher chamar essa afirmação de pessimismo ou realismo.

Chegamos, por fim, ao único poema da seleção escrito em versos livres. Trata-se de “Presentimento no Bar ‘Raízes’”, do volume Poemas à Mão Livre (1981). A rigor, o poeta faz aí uma “anotação poética”. Registro de coisas sensíveis que lhe passam pela cabeça. O bar vazio, que oferece um lugar bom “para beber e pensar”; a ideia de que poderia aparecer ali uma moça, “que não chegará”; e ainda o pressentimento de que nunca mais estará de novo, numa tarde, naquele mesmo bar. É poesia em estado puro: não há exatamente um tema ou outra preocupação, somente a poesia.

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Alberto da Cunha Melo nasceu em Jaboatão dos Guararapes (PE), na região metropolitana do Recife, em 1942. Sociólogo e jornalista, trabalhou nas duas áreas. Desenvolveu também intensa atividade cultural. Participou das Edições Pirata, movimento editorial que publicou mais de 300 títulos entre 1979 e 1984. Como poeta, Cunha Melo estreou em 1966 com o volume Círculo Cósmico, do qual três poemas são transcritos ao lado. Publicou, em vida, quase 20 títulos de poesia. Alberto da Cunha Melo faleceu em outubro de 2007. Organizada pela viúva, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo, sua Poesia Completa saiu em 2017 pela Editora Record. Mais informações no site dedicado ao poeta: Alberto da Cunha Melo.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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O lampejo do carvão

• Alberto da Cunha Melo


              



Pino Daeni - Flamenco in red
Pino Daeni, pintor italiano, Flamenco em vermelho


1. PUBLICAÇÃO DO CORPO

Quando distanciar-me das altas
nuvens, onde sempre habitei,
devo levar algumas delas
para que saibam minha pátria.

Após soltar de espaço a espaço
as cascas vivas da memória,
devo levar para a cidade
o corpo, esta palavra forte.

Só meu corpo vai realmente
pisar nos jardins e nos pátios
e com mãos novas sacudir
as grandes árvores por perto.

Vou conduzi-lo com o cuidado
de livro muito alvo na tarde:
É minha única esperança
de estar bem vivo entre vocês.

Só meu corpo sabe virar
todas as páginas do tempo
e só ele foi publicado
completo, para ser seguido.

    De Círculo Cósmico (1966)





Pino Daeni - Solace
Pino Daeni, Alívio


4. ASTERISCOS

Como um suicida que deixa
uma carta em cima da mesa,
para descansar a polícia,
deixo o meu poema no mundo.

Minha dor lógica jamais
necessitou de testemunho
outro, que não fosse o meu corpo,
sob os ataúdes do Céu.

Pisei nas calçadas da vida
(de cabeça baixa) e gritaram;
desci sem nenhuma palavra
e eles morreram de vergonha.

O telefone negro toca
na sala interminavelmente
deserta. Que nova esperança
dirá um telefone negro?

Os meus amigos têm olhos
horríveis, diante de mim.
Mas não pergunto o que lhes fiz:
deixo o meu poema na mesa.

    De Círculo Cósmico (1966)





Pino Daeni - Lazy afternoon
Pino Daeni, Tarde preguiçosa


17. HORA DE VOAR

O poema depois de pronto
ainda luta com o poeta
e vai crescendo na gaveta,
onde não cabe uma esperança.

Cresce em seguida no meu bolso,
muito menor para contê-lo.
O poema, depois de pronto,
quer-se mostrar, como as crianças.

Fica assustado no casaco
e parece que tem meus olhos.
(Eu lhe acendi o último fósforo
às duas horas da manhã.)

Dentro de mim se move alguém
sempre a julgar-se muito alto,
mas fica na ponta dos pés
quando procura ser notado.

Salva-me na Terra este grande
pudor de mostrar o poema,
como se fosse uma das partes
mais vergonhosas do meu corpo.

    De Círculo Cósmico (1966)





Pino Daeni - Afternoon stroll - 2001
Pino Daeni, Caminhada vespertina (2001)


XXVI

A cem quilômetros por hora,
solto a direção do automóvel
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.

Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.

Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.

Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.

Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.

    De Oração pelo Poema (1969)





Pino Daeni - Isabella
Pino Daeni, Isabella


METRALHADORA THOMPSON OU MORTE "T"

Quando há tempos deixou de ser
a simples marca de uma arma
tornou-se a marca de uma morte:
a morte Thompson, morte “T”.

Pesada como uma criança
gorda, filha do fabricante,
não para de gritar enquanto
não devora o pente de balas.

Mineirinho morreu com ela
embrulhado em seu barracão
(se eu usasse rima talvez
fizesse disso uma canção).

A “velha Thompson” consegue,
quando a distância é favorável,
ensinar de longe um poeta
a repetir-se sem cansar.

Esta cantora diferente
canta para homens deitados:
quem se levanta para ouvi-la
não ouve a próxima audição.

    De Poemas Anteriores (1989)





Pino Daeni - Best friends
Pino Daeni, Melhores amigas


FORMAS DE ABENÇOAR

Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.

Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.

Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.

Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.

No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.

    De O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos (2006)





Pino Daeni - Yellow rose of Madrid
Pino Daeni, A rosa amarela de Madri


PRESSENTIMENTO NO BAR “RAÍZES”

Este bar vai fechar;
está tão vazio
e maravilhosamente calado,
tão bom para a gente
beber e pensar
em tarde de chuva
e chegada de moça
que não chegará;
tão cheio de moscas
e garçons a bocejar
que a gente pressente
não mais beberá
(com moça ou sem moça)
outra vez, outra tarde,
neste mesmo bar.

    De Poemas à Mão Livre (1981)



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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



• Alberto da Cunha Melo
   in Poesia Completa
   org. Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo
   Record, 1a. ed., Rio de Janeiro, 2017
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* Affonso Manta, in Antologia Poética (2013)
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* Imagens: obras de Pino Daeni (1939-2010), pintor italiano