Número 418 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 2019

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«Um homem é um homem, no que não vê e no que consome.» (João Guimarães Rosa) *

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Vera Lúcia de Oliveira
Vera Lúcia de Oliveira



Amigas e amigos,

A poeta Vera Lúcia de Oliveira (Cândido Mota-SP, 1958) já é conhecida de quem acompanha este boletim há algum tempo. Ela esteve aqui pela última vez em outubro de 2015, na edição n. 341 do poesia.​net, que punha em destaque seus livros O Músculo Amargo do Mundo (Escrituras, 2014) e A Poesia É um Estado de Transe (Portal, 2010). Agora, a autora retorna, graças ao lançamento recente de sua coletânea Minha Língua Roça o Mundo (Patuá, 2018).

Nesse novo trabalho, Vera Lúcia de Oliveira mantém traços essenciais de sua poesia, sempre voltada para a vida de figuras brasileiras, especialmente pessoas mais humildes, suas lutas, sofrimentos e pequenas alegrias.

Embora já resida há décadas na Itália, a poeta não perde a referência das gentes e lugares de seu país de origem. Seu livro Minha Língua Roça o Mundo é uma coleção de poemas, quase sempre curtos, nos quais se traçam retratos de gente brasileira sem nome e sem brilho.

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Para este boletim, selecionei seis poemas do livro. Observo que, neste volume, a autora não agrega títulos aos poemas. Procedo então da forma que aqui já se tornou padrão nesses casos: uso como título o primeiro verso do poema, entre colchetes.

O primeiro poema de nossa miniantologia é “[No Beiral da Casa]”. Trata-se de um momento lírico, que se destaca entre tantos outros de amargura e até mesmo de tragédia. É o caso do próximo poema, “[Em Dias de Vento e Frio]”.

Em “[Memória é Medo]” e “[Estava na Cozinha]”, o leitor encontra dois exemplos de solidão, desamparo e, ainda, desencontro familiar. Os versos são curtos e ágeis, sem nenhum colorido ou efeito especial. Os textos se apresentam com a mesma secura dos estilhaços de vida que retratam.

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No poema seguinte, “[Quando Vi o Mar pela Primeira Vez]”, vem mais um momento de lirismo e maravilhamento da pessoa, certamente alguém do interior que tem a oportunidade de conhecer a imensidão do mar.

No último texto, “[Retirou uma Planta Renitente]”, ocorre uma mudança de narrador. Em todos os outros, a voz é de alguém que participa, ou participou, da cena e fala em primeira pessoa. Agora, quem tem a palavra é um espectador, que descreve a visita de uma mulher ao túmulo de pessoa muito próxima: marido? filho?

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Há um aspecto interessante no livro de Vera Lúcia de Oliveira. Cada poema, considerado isoladamente, não passa de um pedaço de vida, uma cena, uma lembrança. Após a leitura, os estilhaços se juntam na cabeça do leitor formando um amplo painel de pessoas deserdadas, desgarradas e sofridas que teimosamente lutam para seguir em frente.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTO

Breve História da Vida e Morte de Anísio Teixeira
• João Augusto de Lima Rocha

Carlos Machado - A Mulher de LóO professor baiano João Augusto de Lima Rocha lança pela EDUFBA o livro Breve História da Vida e Morte de Anísio Teixeira. O estudo prova a falsidade da tese de que o educador Anísio Teixeira (1900-1971) morreu ao cair no fosso do elevador no prédio onde morava seu amigo Aurélio Buarque de Hollanda, o dicionarista, no Rio de Janeiro.


Quando:
Quinta-feira, 14/03/2019, às 18h

Onde:
Livraria do Espaço Itaú de Cinema
Rua Augusta, 1470/1475 - Consolação
São Paulo, SP


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ERRATA

No boletim n. 414, sobre a poeta potiguar Iracema Macedo, afirmei que ela faz parte do grupo de ação cultural Casarão de Poesia, de Currais Novos-RN. Está errado. Quem integra esse grupo é a poeta Iara Maria Carvalho, nascida e residente nessa cidade. Fiz uma troca de nomes numa nota em que apareciam as duas escritoras conterrâneas. Eu mesmo notei o equívoco, agora. A correção já foi feita na versão do boletim exposta na internet.


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Estilhaços de vida

• Vera Lúcia de Oliveira


              



Scott Burdick - Megan - 2008
Scott Burdick, pintor norte-americano, Megan (2008)


[NO BEIRAL DA CASA]

no beiral da casa
faziam ninhos as andorinhas
dali partiam rasantes
num diz-que-diz-que de bicos
a casa parece que levitava
de pios e ninhos
em atropelo

tem dias que achava
que o telhado ia levantar voo


[EM DIAS DE VENTO E FRIO]

em dias de vento e frio
a mãe se levantava de noite
abria a cômoda desempacotava panos
toalhas fronhas lençóis e tudo
o que pudesse cobrir um corpo

a geada passava perto
estendia-se sobre os campos
sem coragem de abater
a pirâmide de trapos e tramas
que ela edificava sobre nós



Scott Burdick - Susan - 2004- detail
Scott Burdick, Susan (2004), detalhe


[MEMÓRIA É MEDO]

memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre


[ESTAVA NA COZINHA]

estava na cozinha
escolhendo feijão
com a alma solta
no vento
ele veio
me rasgou
por dentro
e nunca mais
tive conserto



Scott Burdick - Korinne - profile - 2007
Scott Burdick, Korinne - perfil (2007)


[QUANDO VI O MAR PELA PRIMEIRA VEZ]

quando vi o mar pela primeira vez
a emoção foi tanta que adoeci
senti-me abraçada por aquela
extensão de água e céu
onde se podia entrar
e até sumir


[RETIROU UMA PLANTA RENITENTE]

retirou uma planta renitente
enfiada entre os tijolos
do jazigo
limpou a superfície do pó
jogou a água morta
de um vaso desbeiçado

ali tinha lugar
para dois, falou
olhando distraída
a água encher de novo
o vaso que ajeitou
com as margaridas




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



• Vera Lúcia de Oliveira
   in Minha Língua Roça o Mundo
   Patuá, São Paulo, 2018
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* João Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas
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* Imagens: obras de Scott Burdick (1967-), pintor contemporâneo norte-americano.