Número 421 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 24 de abril de 2019

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«A vida é uma coisa torta / escrita com linhas certas.» (Myriam Fraga) *

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Ronaldo Costa Fernandes
Ronaldo Costa Fernandes



Amigas e amigos,

Poeta, ficcionista e ensaísta, o maranhense Ronaldo Costa Fernandes (São Luís, 1952) já esteve outras vezes neste quinzenário: poesia.​net n. 313, n. 263 e n. 126. Agora, o poeta nos visita mais uma vez, graças ao lançamento recente de sua nova coletânea, Matadouro de Vozes (7Letras, 2018).

Consistente em sua trajetória, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes destaca-se pela força das metáforas e se move em ritmo ágil, sem nunca ocultar os percalços e o exaustivo exercício de estar no mundo. Este Matadouro de Vozes não se afasta desse rumo. Não é à toa que o poeta, crítico e ensaísta carioca Antonio Carlos Secchin classifica o conteúdo desse livro como “tensa e densa poesia”.

De fato, o que se lê nos textos de Costa Fernandes está sempre envolto num clima de tensão, com metáforas que expressam certa dificuldade de dizer e sentir, e uma permanente inadequação.

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Para este boletim, selecionei seis poemas de Matadouro de Vozes. O primeiro é “Elevadores”, no qual se percebe a destreza com que o poeta trabalha com as metáforas. O título remete a essas máquinas triviais para quem vive em cidades. Mas o texto não fica por aí: criva o leitor de perguntas que remetem a exigentes situações existenciais. Exemplo: “Em que andar descerei / quando chegar a minha hora?”

Em “Leito Profano” aparece outra cena aparentemente comum. Um casal na cama. Contudo, surgem, como sempre, novos ângulos de observação que chegam a negar inclusive aquilo que os olhos enxergam. “Os amantes não são dois, muito menos um, / são muitos que se deitam na mesma cama (...)”. Esse deslocamento frustra as expectativas mais rasas, forçando o leitor a ficar atento a aspectos inesperados. Não há caminho suave: o trajeto proposto é sempre incômodo e pedregoso.

Em “Caderno” vêm os mesmos impedimentos. No outono, “tempo de cinzas”, é difícil escrever. Os galhos secos não sugerem nada para o corpo do texto, mas o chão se apresenta “coalhado de pontos finais”. Já em “Búfalo Sobre Plantação” o texto começa com uma declaração bombástica: “Meu cérebro dói de tanta esperança.” No decorrer do poema, vai-se constatar que não existe aí nenhuma ingenuidade. Há espaço para a esperança, porém não sem passar pelas “paredes milenares do homem”, que impedem o trânsito, “e a cachoeira das águas passadas / que movem o moinho das desventuras”.

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No poema “Farinha” brilha a sentença final, que — mais uma vez — confirma a inedequação do sujeito lírico que fala nos poemas de Ronaldo Costa Fernandes: “Nada me desassossega / mais que o sossego”. Aqui, outra flagrante quebra de expectativa e novo estremeção na tranquilidade do leitor.

Por fim, em “O Papel de Cada Um”, faz-se uma espécie de medição do peso específico de vários tipos de documentos: papéis de divórcio, atestado de óbito. E a própria epiderme entra nesse levantamento: “Minha pele, o papel do meu corpo, / se destitui do tempo.”

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Ronaldo Costa Fernandes é maranhense criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília. Doutor em literatura pela UnB, escreveu em prosa, entre outros títulos, os romances O Viúvo (2005) e Um Homem é Muito Pouco (2010), a coleção de contos Manual de Tortura (2007) e o ensaio A Ideologia do Personagem Brasileiro (2007).

Como poeta, Costa Fernandes estreou com o volume Urbe, de 1975, hoje renegado. Vieram depois Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004), A Máquina das Mãos (2009) e Memória dos Porcos (2012), O Difícil Exercício das Cinzas (2014) e Matadouro de Vozes (2018).


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado



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LANÇAMENTOS

Cinco livros em São Paulo (um de memórias, três de poesia e um romance) e mais um de contos em Santiago do Cacém, no Alentejo, Portugal.

O País da Utopia
Renata Pallottini

Renata Pallottini - O país da utopia “Tudo aqui vai ser mentira e verdade, imaginação, lembrança alheia, lembrança minha, saudade e um pouco de História”. Assim escreve a poeta, dramaturga e tradutora paulistana Renata Pallottini sobre seu livro de memórias O País da Utopia, lançado agora pela Editora Hucitec.

Quando:
Sexta-feira, 26/04/2019, às 18h30

Onde:
Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509
(próx. à Estação Brigadeiro do Metrô)
São Paulo, SP


• Se o que Eu Vi
  André Caramuru Aubert
• Outono Azul a Sul
  Calí Boreaz
• Fundamentos de Ventilação
  e Apneia

  Alberto Bresciani

3 poetas - Patuá

 

A Editora Patuá lança três novos trabalhos dos poetas André Caramuru Aubert (Se o que Eu Vi), Calí Boreaz (Outono Azul a Sul) e Alberto Bresciani (Fundamentos de Ventilação e Apneia).

Quando:
Sexta-feira, 03/05/2019, às 19h

Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena
São Paulo, SP


Histórias de um Tempo Só
Ana Zorrinho

Ana Zorrinho - Histórias de um Tempo SóA escritora e atriz portuguesa Ana Zorrinho lança o livro Histórias de um Tempo Só, que reúne dez contos unidos pela temática da solidão. O livro sai pela editora Caleidoscópio e tem prefácio de Isabel Lustosa, professora da Universidade Nova de Lisboa.

Quando:
Sábado, 04/05/2019,
a partir das 16h30

Onde:
Casa dos Arcos
Rua da Misericórdia, n. 7
Largo do Pelourinho
Santiago do Cacém
Alentejo, Portugal

O Verão Tardio
Luiz Ruffato

Luiz Ruffato - O verão tardioO escritor mineiro Luiz Ruffato lança novo romance, O Verão Tardio. Segundo o autor, o livro pode ser lido como “uma descrição da história brasileira contemporânea, na qual as classes sociais — pobres, remediados, ricos — romperam o diálogo”.

Quando:
Terça-feira, 07/05/2019, às 19h

Onde:
Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509
(próx. à Estação Brigadeiro do Metrô)
São Paulo, SP

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Tensa e densa poesia


• Ronaldo Costa Fernandes


              



Modigliani - Woman with a fan - 1919
Amedeo Modigliani, pintor italiano, Mulher com leque


ELEVADORES

É um estômago de ferro
que devora e vomita
todos na barriga da baleia
em sua viagem vertical.

Em que andar descerei
quando chegar a minha hora?
No térreo das poucas ideias?
Na planta baixa
da arquitetura do marasmo?

Ou arranharei os céus
com a hipótese das ascensões?



Modigliani - Bride and groom - 1915
Modigliani, Noivo e noiva (1915)


LEITO PROFANO

Os amantes se unem na formidável imagem
de um ser de quatro pernas e quatro braços.
Os amantes não são dois, muito menos um,
são muitos que se deitam na mesma cama
de gemidos vicinais, de rios abundantes
que desembocam, ora rudes, ora alegres,
numa foz dissoluta de líquidos e vozes.

Multiplicam-se, cercados de fantasmas erradios,
horizontal floresta de pelos e peles.
A branca flor do desejo,
tão pura e difícil
como a travessia na corda bamba
entre dois prédios que não existem.

Solícita e adocicada,
a matéria se corrompe
à quentura dos nervos
ou à mansidão do fastio.
O fascínio pelo abismo que é pôr
o pé no chão frio ao baixar do leito.
No leito deste rio,
só há fluidez de pesadelos ansiosos,
umedecidos, e de correntezas de ar e culpa.
O travesseiro que cumpre seu nome:
atravessar o vivente
para as águas profundas do dormente.



Modigliani - Retrato de Beatrice Hastings - 191t
Modigliani, Retrato de Beatrice Hastings (1916)


CADERNO

Difícil escrever
em tempo de cinzas
o caderno de folhas secas.
É outono,
o chão coalhado de pontos finais.

Os galhos magrelinhos
esticam seus braços
rabiscando o caderno sem pauta.

Da boca de lobo
escorrem minhas notas
ao pé da vida.

Um diário só vale a pena
se não falar de hoje.



Modigliani - Madame Kisling - c1917
Modigliani, Senhora Kiesling (c.1917)


BÚFALO SOBRE PLANTAÇÃO

Meu cérebro dói de tanta esperança.
Meu corpo bate lúcido
e minhas pernas desvairam.
Mosteiros que são sonhos
se encostam na aurora.
Paredes milenares do homem
impedem o livre trânsito
de mercadorias, alegrias
e mágicas pueris, amamentadas
pelo leite virginal dos inícios.

Nenhuma ilusão é de ótica,
toda ilusão é dos nervos
que são estrábicos
e trazem as cataratas
para inundar de água
o parco espaço de caimento
e a cachoeira das águas passadas
que movem o moinho das desventuras.



Modigliani - Gypsy woman with baby - 1919
Modigliani, Cigana com bebê (1919)


FARINHA

Tudo o que existe se esfarinha.
Tudo o que é férreo
um dia se corrói
que é outra forma de farinha.

A memória
tem mais fermento das ilusões
que trigo da razão.
Meus olhos são dois buracos negros.
Nada me desassossega
mais que o sossego.



Modigliani - Autorretrato - 1919
Modigliani, Autorretrato (1919)


O PAPEL DE CADA UM

Nem todo papel
tem o mesmo peso.
Os papéis do divórcio
têm a gramatura descabelada.
O quilo do atestado de óbito
é áspero e melancólico.

A saliva da máquina me azeita.
Guardo a fome na despensa.
A roda do desejo ainda me saliva.

A largura do mínimo.
Trago minhas opiniões,
evaporo minhas ideias,
e o que me resta são cinzas.

Minha pele, o papel do meu corpo,
se destitui do tempo.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



• Ronaldo Costa Fernandes
   in Matadouro de Vozes
   7Letras, Rio de Janeiro, 2018
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* Myriam Fraga, "Cabala", in As Purificações (1981)
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* Imagens: obras de Amedeo Modigliani (1884-1920), pintor italiano.