Número 440 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 25 de março de 2020

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«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *

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Millôr Fernandes
Millôr Fernandes



Amigas e amigos,

Nesta edição, o boletim se volta, pela primeira vez, para a poesia de humor. E para fazer isso em nível elevado, nada melhor do que trazer Millôr Fernandes (1923-2012), um dos expoentes do humor no Brasil.

A rigor, a classificação “humorista” é apenas uma das múltiplas facetas de Millôr Fernandes. Ele foi também, sem nenhum favor, desenhista, dramaturgo, romancista, poeta, tradutor e jornalista.

Para que essa lista de atividades não pareça apenas uma enumeração pomposa e vazia, basta citar que o verbete “Millôr Fernandes” na Wikipédia (consultado ontem, 24/03/2020) elenca 37 obras publicadas em prosa, três de poesia, uma de artes visuais, nove peças de teatro editadas em livro (mais cinco não editadas), 11 espetáculos musicais e ainda quase uma centena de traduções, que incluem romances, fábulas e textos teatrais. Uma obra de respeito.

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Para esta edição, tomamos por base dois livros de Millôr Fernandes: Papáverum Millôr (Nórdica, Rio de Janeiro, 1974) e Poemas (L&PM, Porto Alegre, 1984).

Para começar pisando forte, vamos ler a famosa “Poesia Matemática”, texto datado de 1950. Nele, Millôr pinta e borda com elementos matemáticos. A fábula começa com uma paixão irresistível: “Às folhas tantas / Do livro matemático / Um Quociente / apaixonou-se / Um dia / Doidamente / Por uma Incógnita”.

E o romance entre os dois segue, até quando aparece o motivo de sua separação, “O Máximo Divisor Comum / Frequentador de Círculos Concêntricos / Viciosos”. E tudo vai desaguar na Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. Deliciem-se com as aventuras dessas entidades matemáticas.

Salto dois poemas curtos, que falam por si sós, e passo para “Bizâncio: 1960”, uma quadrinha dedicada ao poeta Mário Faustino. Sempre perspicaz em suas observações, Millôr indica a cautela dos sábios em flagrante contraste com a afoiteza dos idiotas. Este, aliás, é o quadro a que assistimos hoje, com autoridades negando repetidamente a periculosidade do coronavírus: “Os imbecis atacam / De surpresa”.

Uma técnica desenvolvida por Millôr em seus textos humorísticos é trabalhar frequentemente com um personagem que fala em primeira pessoa. É o que se vê em vários textos transcritos aqui e também no “Poeminha a um Fotógrafo”. O alvo, neste último, é a conhecida manifestação da vaidade pessoal de quem, literalmente, quer ficar bem na foto.

Até aqui, os textos citados foram todos extraídos do livro Papáverum Millôr. A propósito, aqui cabe uma explicação a respeito desse título. No “Poeminha Última Vontade”, de 1962, o autor solicita que seu corpo seja enterrado em qualquer lugar, “que não seja, porém, um cemitério”. E finaliza: “Até que um dia, de mim caia a semente / De onde há de brotar a flor / Que eu peço que se chame / Papáverum Millôr”. Portanto, o poeta pertence à família das papaveráceas (papoulas) e sua espécie tem por binome científico Papaverum millor — em itálico e sem acentos, para obedecer à regra de Carl Linnæus. Millôr certamente usou os acentos para deixar clara a pronúncia das duas palavras.

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A partir deste ponto, os textos que serão citados provêm do livro Poemas. O primeiro deles é o sarcástico “Poeminha Inzoneiro”. Conforme o dicionário, o adjetivo inzoneiro significa sonso, manhoso, enganador. O sujeito que se apresenta neste poeminha confessa ser um sabujo para “os que estão por cima” e tira dos que nada têm. Mas sempre se afirma um “homem de bem”. Mais uma vez, Millôr, num texto publicado há décadas, parece falar de hoje, neste país devastado por “homens de bem”.

A mesma sensação nos visita ao ler o “Último Aviso”, que transcrevo na íntegra: “Depressa, meu irmão, / E sai da pista, / Que o Brasil é um trem / Sem maquinista!” O alerta se aplica perfeitamente aos viróticos dias atuais. O terceto “Poemeu Efemérico” nos provoca ideia similar.

O poemeto seguinte é fruto de uma fina observação das ruas cariocas — no caso uma especial esquina no bairro de Ipanema, a uma quadra da praia.

Vem a seguir o “Poeminha com Limites”, no qual se destaca o filósofo Millôr, que apresenta “limites” para quem pretende ser feliz. Uma curiosidade: chamou-me a atenção a grande coincidência desse poema com a letra da canção “No Analices” (assim mesmo, em espanhol), composição de Claudio Cartier e Paulo César Feital. A letra começa assim: “Se quieres ser feliz como me dices / No analices / No analices”. Ouça aqui a música na interpretação de Nana Caymmi e Claudio Cartier.

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No próximo poema, “Poemeu Paulatino II - Manu Militari” a irreverência milloriana se mostra ao comentar uma notícia sobre a aposentadoria do general Leopoldo Galtieri (1926-2003), presidente-ditador argentino durante a guerra das Malvinas (1982). Galtieri foi julgado responsável pelo desaparecimento de militantes da oposição às juntas militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983.

No “Poemeu Paulatino III - Memento Homo”, o humorista lamenta um encontro que é o único a que não pode faltar. Observerm os subtítulos desses poemas, sempre em latim: “Manu Militari” e “Memento Homo”. Os títulos fazem um trocadilho com a famosa Antologia Palatina, coleção de poemas gregos dos períodos clássico e bizantino.

Sabe-se também que Millôr adorava o idioma latino. No último poema da seleção “Tempos Edax Rerum (Só pra esnobar)”, ele brinca com a citação na língua de Júlio César. A frase, aliás, vem das Metamorfoses, do poeta Ovídio, e quer dizer “o tempo devorador das coisas”.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Papáverum Millôr


• Millôr Fernandes


              



Slava Fokk-beautiful.tulip-2018
Slava Fokk, russo, Bela tulipa (2018)



POESIA MATEMÁTICA

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos romboides, boca trapezoide,
Corpo otogonal, seios esferoides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela
Até que se encontraram
No Infinito.
“Quem és tu?” indagou ele
Com ânsia radical.
“Eu sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
— O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs —
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da Quarta Dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar
Mais que um lar,
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta.
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

03.10.1950



Slava Fokk
Slava Fokk, Magnólia (2017)



SÓ SEI QUE NADA SEI
Poesia com Autocrítica

Há os que não sabem antropologia
E os que ignoram trigonometria.
Só de mim ninguém pode falar nada:
Minha ignorância
Não é especializada.


POESIA DE INCOMPREENSÃO INFANTIL

A natureza é sábia,
Mas não compreende um fato:
Por que só tem uma mãe
E tem tanto parente chato?

10.05.1955


BIZÂNCIO: 1960

    A Mário Faustino

Discutem os sábios
Sem certeza.
Os imbecis atacam
De surpresa.




Slava Fokk - moulin.rouge
Slava Fokk, Moulin Rouge



POEMINHA A UM FOTÓGRAFO

Retoca, meu rapaz, retoca bem;
Tira aqui um pouco da papada,
E mete uns cabelos mais;
Tem quase nada.
Corta a curva do nariz
Alisa as rugas
Raspa a cicatriz
(não morri por um triz)
E não esquece de botar
Um pouco de brilho juvenil
No olhar.
Eu lhe recomendei bem
Ao fazer o pedido:
Não me agrada sair
Tão parecido.

04.10.1960


POEMINHA IRREFUTÁVEL

Você engordou tanto!
Posso dizer sem perigo:
“és o meu maior amigo!”

25.02.1968


NÃO SOU DE ENFIAR COMPLEXO
Poeminha Defensivo

Se me chamam ignorante
Meto logo uma segunda:
“Ninguém vê minha cultura
Porque é muito profunda”.

19.05.1971




Slava Fokk-artist-2015
Slava Fokk, Artista (2015)



POEMINHA INZONEIRO

Por brasileiro eu me viro
Tomando o algum da gentalha
E dos que não dão, eu tiro,
Pisando em quem me atrapalha.
Sabujo os que estão por cima
Exploro quem me acredita
Corrompo quem não me estima
E enrolo até jesuíta.
Tungando seja quem seja
Mas mais os que nada têm
Depois confesso na Igreja:
“Pô, sou um homem de bem!”


ÚLTIMO AVISO

Depressa, meu irmão,
E sai da pista,
Que o Brasil é um trem
Sem maquinista!


POEMEU EFEMÉRICO

Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril


POEMINHA DEDICADO ÀS ENCRUZILHADAS
DA VIDA E DA MORTE
(PRUDENTE DE MORAIS x VINICIUS DE MORAES)

Numa de nossas esquinas
Mais legais
Foram acabar juntos
O Prudente
E o imprudente
De Morais.


POEMINHA COM LIMITES

Se queres ser feliz
Como tu dizes
Repara nos deslizes
Mas não generalizes.
Nem analises!


    Do livro Papáverum Millôr (1974)




Slava Fokk-tulips-2014
Slava Fokk, Tulipas (2014)



POEMEU PAULATINO II
Manu Militari

Galtieri, que matou a moçada
Vai pra reserva remunerada.
Reparem como é sacana
A ideia militar da vida humana.


POEMEU PAULATINO III
Memento Homo

Só há mesmo um encontro
A que não posso faltar
E não me avisaram quando
Nem me disseram o lugar.


TEMPUS EDAX RERUM
(Só pra esnobar)

Sei, não é lisonjeiro,
Mas você é do tempo
Em que cruzeiro
Era dinheiro
Ele do tempo
Em que o Brás
Era tesoureiro
E eu do tempo
Em que relógio
Tinha ponteiro.

    Do livro Poemas (1984)




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020


Foto:
Marcos DPaula/AE/Veja 2007


Millôr Fernandes
      •  “Poesia Matemática”, “Só Sei que Nada Sei”,
      “Poesia de Incompreensão Infantil”, “Bizâncio: 1960”,
      “Poeminha a um Fotógrafo”, “Poeminha Irrefutável”,
      “Não Sou de Enfiar Complexo”
      in Papáverum Millôr
      Nórdica, Rio de Janeiro, 1974

      •  “Poeminha Inzoneiro”, “Último Aviso”, “Poemeu Efemérico”,
      “Poeminha Dedicado às Encruzilhadas da Vida e da Morte”,
      “Poeminha com Limites”, “Poemeu Paulatino II”, “Poemeu Paulatino III”,
      “Tempus Edax Rerum”
      in Poemas
      L&PM, Porto Alegre, 1984
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* Francisco Carvalho, “Pomar Alheio”, in O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)
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* Imagens: quadros do artisa russo Slava Fokk (1976-).