Número 441 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 8 de abril de 2020

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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Ruy Proença
Ruy Proença



Amigas e amigos,

Em seu livro mais recente, Monstruário de fomes (Patuá, 2019), o poeta Ruy Proença investiu numa forma poética pouco praticada no Brasil: o poema em prosa. De fato, entre os nomes mais celebrados da poesia brasileira são raras as ocorrências desse tipo de poema.

Historicamente, o poema em prosa conquistou visibilidade especial com o livro de Charles Baudelaire (1821-1867) Petits Poèmes en Prose, também conhecido como Le Spleen de Paris, publicação póstuma de 1869. Talvez a citação mais lembrada dessa obra seja o trecho que diz: “É preciso estar sempre embriagado (...). Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embiaguem-se”.

Ao retomar o formato baudelairiano, Ruy Proença oferece aos leitores um volume obviamente resultante de um projeto. Na avaliação do poeta e crítico Renan Nuernberger, autor do posfácio de Monstruário de Fomes, esse livro constitui “uma espécie de reescrita de Caçambas” (Editora 34, 2015), título anterior de Proença destacado aqui na edição n. 343 do poesia.net.

Para Nuernberger, Proença combina sua experiência poética com uma “formulação prosaica, localizada entre o diário e o documentário” e assim “relativiza as fronteiras entre o registro e o devaneio”. De certo modo, a prosa puxa o texto para o relato mais factual e a poesia, ao contrário, o empurra em direção à fantasia.

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Para este boletim, selecionei cinco poemas em prosa de Ruy Proença. O primeiro é “O Bicho”, a experiência do “bicho-homem”, certamente um animal urbano, quando se vê, segundo o poeta, num ambiente campestre.

Em seguida, vem “O Amor”. Aqui, em pinceladas breves, tenta-se definir esse contraditório sentimento. Sem, naturalmente, chegar a uma conclusão, o texto termina perguntando se o amor não será um produto falso e contrabandeado. Aliás, Carlos Drummond de Andrade classifica a relação amorosa como um “monstruário de fomes enredadas”, expressão da qual Ruy Proença extraiu o título de seu livro. O poema de Drummond é “Mineração do Outro” (do livro Lição de Coisas, 1962).

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“O Fundo da Cartola” é um poema no qual a imaginação do poeta corre solta. Aí está um momento em que prevalece a fantasia. Feito de perguntas, brinca com referências artísticas como Bernardo Soares, o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, a Pasárgada de Manuel Bandeira, uma sonata de Beethoven, uma canção com letra do poeta Torquato Neto... E é só isso. Puro devaneio.

Como a cumprir a observação feita por Renan Nuernberger, “Janelas” equilibra-se entre o relato de uma viagem e a dimensão poética extraída dessa experiência. Tanto que um poema (em versos) escrito sobre a viagem é citado no final do texto em prosa.

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Alcançamos, por fim, o poema “Agora”, dedicado (no final do livro) ao poeta e letrista Arnaldo Antunes. O autor destaca que o texto foi escrito “em consonância” com uma letra homônima do compositor. Aqui, Proença usa a mesma técnica reiterativa das letras de Antunes e busca, pela repetição da palavra “agora”, destacar a simultaneidade de tudo nos passos de nossa vida veloz. É como se todos os fatos acontecessem ao mesmo tempo, desde o banal apodrecimento do mamão na fruteira até a morte da mãe, passando por uma miríade de situações, sem direito sequer a uma simples pausa para pensar.

Diferentemente de todos os outros no livro, neste poema não aparecem pontos nem vírgulas: tudo se atropela. E mais: não há ponto final, o que abre a hipótese de que o “agora” se estende indefinidamente. Não por acaso, Ruy Proença fecha o livro com esse texto que não termina. É tudo muito rápido — e breve.

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Depois dos poemas trazidos de Monstruário de Fomes, encerro a miniantologia ao lado com “Tiranias”, um texto do livro Visão do Térreo (2007). Fiz questão de citá-lo aqui porque, a meu ver, é um poema que resume estes tempos em que os fatos e a boa argumentação lógica não são mais suficientes: “os ouvidos têm paredes”.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Monstruário de fomes


• Ruy Proença


              



Rafal Olbinski-ballerina-2017
Rafal Olbinski, polonês, Ballerina (2017)



O BICHO

morraria. cume. o bicho-homem chega. os bezerros fogem. as seriemas fogem. o silêncio não foge, não pode. está enraizado na paisagem. o bicho-homem se aflige com o silêncio. enlouquecedor. o bicho-homem não está preparado para um mar de silêncio. há muito ruído dentro do bicho-homem. muito barulho de sofrimento e prazer. vidros se quebrando, gemidos, furadeiras trabalhando, navios indo a pique. ele quer fugir de si, fugir do silêncio, mas não pode. um grilo, um mosquito, um anu o aliviam de quando em quando. o sol está a ponto de fugir também, partir. antes de despencar, se quebrar, sangrar por trás da morraria, espalha sua luz dourada sobre as partículas suspensas de poeira, a relva, as árvores. o bicho-homem, tão pequeno, esquece a dor quando vê de cima a taça iluminada de uma araucária.



Rafal Olbinski-the.third.dimension.of.time
Rafal Olbinski, A terceira dimensão do tempo


O AMOR

o amor é uma pinguela sobre um precipício, quem ama deve verificar todos os dias as tábuas, os parafusos, as porcas, as cordas, proclamar à exaustão alto e bom som: “eu te amo”, “eu te amo”. trazer flores do vendedor do semáforo. programar viagens para Istambul, São Petersburgo. achar água no deserto. inventar miragens. lapidar o diamante bruto do senso comum. deixar-se iludir pelo boca a boca. o amor é um produto falso contrabandeado do país vizinho?



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Rafal Olbinski, Contos de amor - Tucano


O FUNDO DA CARTOLA

quem te espera no fundo do universo? o que te aguarda? um cabide para, cansado, pendurar a roupa? teu avô alemão que abandonou o corpo em tuas mãos e partiu em sã consciência? uma lata de lixo, para se desfazer dos últimos apegos, das últimas ilusões, das últimas más notícias? um cachorro que te ama quem sabe mais que teus próximos? uma boa cama com abajur para ler teus livros? haverá sol no fundo do universo para um banho de sol? que lua carunchada ainda subirá ao palco do firmamento para que se renove o pacto do amor? Bernardo Soares te aguardará burocraticamente na mesa de bar para um brinde pós-expediente? haverá um milhão de spams no fundo do universo? terás a mulher que queres, contagiosa, na cama que escolherás? um sistema de alarme ainda será necessário para te proteger das perversidades? haverá trilha sonora? Appassionata, de Beethoven? Três da madrugada, de Torquato?



Rafal Olbinski-appetite.for.reason-2002
Rafal Olbinski, Apetite pela razão (2002)


JANELAS

em novembro de 1977, indo para Campo Formoso, no sertão baiano, hospedei-me um dia no apartamento de uma querida amiga bailarina, Lia, na praia da Pituba, em Salvador. à noite, sentados no sofá, luzes da sala apagadas, olhando pela janela, ela disse: “olhe aquele prédio escuro, com algumas janelas acesas, pequenos quadrados de luz. imagine a parede do prédio tão mais escura que se confunda com o bloco negro da noite sem lua. não vê que as janelas acesas são pequenos buracos por onde passa a luz que existe do outro lado da parede do mundo?”. tempos depois, lendo Introdução à história da filosofia, de Hegel, vejo que Anaximandro, 2.600 anos antes, teve a mesma ideia observando as estrelas. elas são furos na sólida abóbada celeste, por onde se pode ver a luz do fogo eterno envolvendo a terra. mais tarde, em 1990, em uma oficina de poesia, escrevi o poema Olhar antigo, fruto dessa experiência:

vem a noite
indisfarçável
sem maquiagem
memória solitária
campo de girassóis do pensamento

em seu compacto escudo negro
longínquo
cada estrela
é uma escotilha
debruçada sobre a claridade
de um dia eterno



Rafal Olbinski-mona.lisa2
Rafal Olbinski, Mona Lisa


AGORA

agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino



Rafal Olbinski-black.horse-2016.jpg
Rafal Olbinski, Cavalo negro (2016)


TIRANIAS

Antigamente
diziam: cuidado,
as paredes têm ouvidos

então
falávamos baixo
nos policiávamos

hoje
as coisas mudaram:
os ouvidos têm paredes

de nada
adianta
gritar



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Ruy Proença
      •  Todos os poemas, exceto o último
      in Monstruário de Fomes
      Patuá, São Paulo, 2019

      •  “Tiranias”
      in Visão do Térreo
      Editora 34, São Paulo, 2007
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* Myriam Fraga, “Calendário: Março”, in Femina (1996)
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* Imagens: obras do pintor e ilustrador polonês Rafal Olbinski (1943-), que define sua arte como “surrealismo poético”. Olbinski vive nos EUA.