Número 442 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 22 de abril de 2020

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«Pelos caminhos do mundo,/ nenhum destino se perde:/ há os grandes sonhos dos homens,/ e a surda força dos vermes.» (Cecília Meireles) *

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Ana Elisa Ribeiro
Ana Elisa Ribeiro



Amigas e amigos,

Ainda garoto, li certa vez que alguém era um “burocrata”. Fiquei encafifado com essa palavra. Como não havia por perto quem me pudesse dar alguma luz, fui ao dicionário. Mas o pai dos burros não me valeu. Saí da visita talvez menos esclarecido do que entrei. O problema é que, para explicar uma palavra dessas, o dicionário recorre a conceitos que eu, menino, não alcançava.

Uma história parecida com essa minha recordação de infância forneceu a ideia inicial para o livro Dicionário de Imprecisões, da poeta mineira Ana Elisa Ribeiro. No caso dela, o filho adolescente é que teve a experiência com o glossário. Ele reclamou das indefinições encontradas no livro feito justamente para esclarecer. A poeta colheu aí a centelha para escrever um vocabulário poético livre, cheio de incertezas, hesitações e muito bom humor.

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A ideia vingou, e como. Entregue ao público em abril de 2019, o livro — a despeito de todos os ventos contrários à poesia — esgotou-se rapidamente. Ganhou agora, um ano depois, neste abril pandêmico, uma segunda edição, desta vez com lançamento virtual e cumprimentos à distância.

Ao compilar seu tesauro, Ana Elisa Ribeiro deu rédea solta à imaginação e trabalhou com recursos de outras formas de expressão, como a crônica. Assim, os verbetes, irônicos, especulativos, nem sempre têm cara de poemas. Em alguns casos, confirmando as anunciadas imprecisões, ela inclui mais de uma versão para o mesmo verbete. Há também, como em todo dicionário que se preza, referências a outros verbetes, citações de livros e mesmo de outros dicionários.

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Na seleção poética desta edição, transcrevo ao lado alguns verbetes do Dicionário de Imprecisões de Ana Elisa Ribeiro. O primeiro é “Aberturas”, caracterizado como “substantivo feminino de frestas e gretas”. Dito com palavra mais próxima, janelas.

A seguir vem o verbete “Carinho”. Observe o tipo de aproximação indireta. Para chegar à palavra em destaque, a poeta passa primeiro pelo termo “afagar”. Segue-se a definição de “Definição”. Trata-se, de saída, de uma tentativa “geralmente malfadada”. Mais adiante, o texto indica que os burocratas de plantão alteram definições para “parecer eficazes e competentes”.

Agora, vem o registro léxico para “Imenso”, referência a “algo sem medidas”. Daí o texto avança para termos afins, como “imensurável”, “desmedido” e “desmesura”. Em “Inspiração”, a ideia básica era de que ir a Paris garantiria ideias maravilhosas, “motivos para versos impressionantes”. Segundo o verbete, não foi bem assim a experiência da dicionarista.

As definições para “Paixão” são curtíssimas, como a duração do próprio substantivo. Em seguida, a tentativa de dizer o que é “Praça” enreda-se por imprecisões geométricas e descrições do frenético movimento das ruas.

Para concluir a pequena seleção de verbetes, chegamos a “Ventos” — “substantivo masculino, aqui plural e forte”. A abordagem, mais uma vez, não é direta. Começa com mulheres se abanando “no calor dos trópicos” e vai até “aqueles servos que viviam a ventilar as damas”. Mas, afinal, o que são ventos? Como se vê, neste dicionário a resposta é a mais imprecisa que se pode encontrar.

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Nascida na capital mineira em 1975, Ana Elisa Ribeiro é poeta, cronista, contista e realizadora cultural. É também professora e pesquisadora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Estreou em poesia com o livro Poesinha (Poesia Orbital, 1997). Vieram em seguida Perversa (Ciência do Acidente, 2002); Fresta por Onde Olhar (Editorial Interditado, 2008); Anzol de Pescar Infernos(Patuá, 2013); Xadrez (Scriptum, 2015); Álbum (Relicário, 2018); e Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas, 2019).

Entre suas atividades como realizadora cultural destaca-se o projeto Leve um Livro, concebido em parceria com o também poeta e designer Bruno Brum. Leve um Livro foi uma iniciativa voltada para a divulgação de poesia que publicou e distribuiu gratuitamente 72 títulos de 73 poetas de todo o Brasil. Os livros, dois a cada mês, saíram em três temporadas de 12 meses, entre 2014 e 2017.

No total, foram parar nas mãos de leitores belo-horizontinos 180 mil exemplares impressos, que ficavam disponíveis em livrarias, centros culturais e bibliotecas. Interessados de outras regiões também puderam fazer o download de todos os exemplares da coleção no site do projeto (hoje desativado).

Entre os poetas incluídos na coleção Leve um Livro encontram-se nomes conhecidos dos leitores deste boletim, como Adriane Garcia, Edimilson de Almeida Pereira, Líria Porto, Mariana Botelho, Micheliny Verunschk, Nicolas Behr e Ricardo Aleixo. O projeto Leve um Livro teve o apoio da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Dicionário de imprecisões


• Ana Elisa Ribeiro


              



Michael Bergt-reflection-1995
Michael Bergt, americano, Reflexo (1995)


Aberturas

Substantivo feminino de frestas e gretas
___________________________________

Janela vem do latim,
diminutivo de porta — portinha,
e não se parece com fenestra
e nem com ventana
e isso me vem incomodando
desde as pequenas descobertas

mas já que, em português,
a palavra janela é o que é,
e ainda chamando-se assim,
ela permite uma abertura
por onde passam o vento,
a chuva e o ruído da rua:

Enquadre d’onde se observa
a vida de dentro e a de fora;
a dos outros e d’onde a nossa
se dá a ver. Vista de longe,
a moldura de alguma cena.
E tê-la como moldura ou como limite
é da conta de cada um.



Michael Bergt-mosaic-2005
Michael Bergt, Mosaico (2005)


Carinho

Substantivo masculino singular
__________________________

Emprega-se a palavra afagar para dizer de um carinho,
de um tipo de toque que lembra veludo, pelúcia,
geralmente feito apenas com as mãos de um
sobre a pele de outro, no rosto, usualmente.
Embora eu tenha afagado ao longo da vida,
só usei essa palavra em um texto, uma vez,
em janeiro de dois mil e dezenove,
quando precisei me declarar a um amor distante no mapa
e não havia modo de tocar-lhe o rosto carinhosamente.
A palavra afagar fez as vezes do meu toque,
sendo ele uma pessoa sensível ao verso.


Definição

Substantivo feminino
__________________

Tentativa, geralmente malfadada, de responder à questão
O que é?, sem alcançar uma aproximação razoável
ao objeto a ser definido.
Não raro é também tentativa de recortar, cercar, delimitar,
excluindo mais do que explicando, mas talvez alcançando
alguma operacionalidade.
A depender de uma definição, especialmente se for
institucionalizada, e de sua relevância e escala, alguém pode
ser menos ou mais alfabetizado, gay, homem, mulher, criança,
velho, solteiro ou casado e assim qualquer coisa.
Cientistas, políticos e gestores têm por hábito alterar definições
a fim de melhorar o que chamam de resultados, em realidade,
números a serem divulgados aos quatro ventos e que os façam
parecer eficazes e competentes.
Redefinir resulta de duas ou três reuniões de gabinete, que é
mais fácil que efetivamente resolver.



Michael Bergt-revelation-2015
Michael Bergt, Revelação (2015)


Imenso

Adjetivo
_______

A palavra imenso deve se relacionar a algo sem medidas,
assim, meio particípio, está feita e é questão acabada,
aplicando-se ao que se deseje,
em especial ao amor
(a poeta tem falado muito nisso e não é bom exagerar).
Imensurável é o que não se pode medir,
geralmente porque é grande,
em escala desumana, acima do razoável para nossos limites.
Imensurável é talvez o universo,
a velocidade de algo e até um sentimento.
Esse radical, que vem de medir,
incomoda os mais românticos,
que por isso mesmo preferem o desmedido e a desmesura.
Desafortunados os que podem medir certas coisas,
sem dificuldade,
já que resolvemos tratar aqui
da ordem mais poética dos excessos.


Inspiração

Substantivo feminino
__________________

Estive em Paris e pensei que teria mil inspirações
e escreveria poemas provençais
e teria motivos para versos impressionantes
e enxergaria poesia no ar
e fumaria dez cigarros por dia,
mesmo não sendo fumante,
nem poeta.

Nada aconteceu
que me tirasse deste silêncio.
Nem Paris.



Michael Bergt-eclipse-2001
Michael Bergt, Eclipse (2001)


Paixão

Substantivo feminino singular
_________________________

Assombro, susto; desgoverno e desequilíbrio.
É químico, insolúvel.
Efêmero, graças a Deus.


Praça

Substantivo feminino singular
_________________________

a matemática das ruas
e suas esquinas perpendiculares
e calçadas paralelas
com imperfeições imperceptíveis
e quadras em retângulos
que terminam em praças circulares
por onde passam carros a sessenta por hora
e pessoas atarefadas
e onde se sentam pessoas
que jogam o tempo e os silêncios
aos pombos indiferentes



Michael Bergt-the.glance-2009
Michael Bergt, O olhar (2009)


Ventos

Substantivo masculino, aqui plural e forte
____________________________________

A palavra leque faz virem aos meus olhos de dentro
um grupo de mulheres que se abanam no calor dos trópicos,
a despeito de usarem vestidos de muitos panos.
Por que não os tiram então? Mais charmoso é usar leque.

Mas o que me incomoda na palavra leque
é o fato de ela não dizer o que ela faz,
tanto quanto diz abanico.
Somente no verbo é que o leque se realiza: abanar.

Abanar é, pois, então, produzir ela mesma o seu vento,
amenizando um calor externo
que nada diz sobre seu coração.
O abano pode ser também produzido por outrem,
como faziam aqueles servos que viviam a ventilar as damas.
Eu já prefiro os homens que causam calores.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Foto: Adamo Alighieri


Ana Elisa Ribeiro
      in Dicionário de Imprecisões
      Impressões de Minas, Belo Horizonte, 2019
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* Cecília Meireles, “Romance XXXIV”, in Romanceiro da Inconfidência (1953)
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* Imagens: obras do pintor e escultor estadunidense Michael Bergt (1956-).