Número 444 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 20 de maio de 2020

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«Sabe-se da dor, mas toda dor / dribla a alma — e a alma / só tardiamente aprende.» (Antonio Brasileiro) *

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André Caramuru Aubert
André Caramuru Aubert



Amigas e amigos,

O poesia.​net atinge o curioso número 444 e põe em foco o tradutor, romancista e poeta André Caramuru Aubert, que já esteve aqui na edição n. 339, em setembro de 2015. Desta vez, André Caramuru chega a esta página trazido pela sua nova coletânea de poemas, Se / o que eu vi, publicada pela Editora Patuá em 2019.

Neste novo livro, o autor apresenta uma série de poemas que essencialmente seguem os mesmos princípios delineados desde seu primeiro trabalho de poesia, outubro / dezembro (2015). Caramuru é, sem dúvida, um apreciador da poesia estadunidense contemporânea. Mais do que isso: é também um dedicado divulgador dessa poesia, pois publica mensalmente traduções de poetas do norte no Rascunho, jornal literário paranaense.

Uma das características centrais da escrita de André Caramuru é a ausência no poema de quaisquer itens de adorno e até mesmo de elementos tradicionalmente associados à poesia, tais como rimas, assonâncias, paralelismos, metáforas e também recursos que confiram ao poema alguma inclinação, digamos, musical.

As palavras são escolhidas a dedo para dizer tudo de forma clara e inequívoca, como quem não quer correr o risco de dar margem a qualquer dúvida.

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A pequena seleção ao lado mostra cinco poemas de Se / o que eu vi. O primeiro é “Se”. Decidi destacá-lo aqui porque seu texto, curto, com apenas sete versos, parece resumir a atual situação de pandemia global e pandemônio nacional, na qual o governo federal joga a favor do vírus e contra a vida dos brasileiros.

Nesse contexto, como diz o poema — que foi escrito antes e obviamente refere-se a outra coisa —, a cada manhã desenha-se a possibilidade de “um verdadeiro apocalipse”.

O poema seguinte, “Sobre a vida”, descreve com requintes detalhistas um saco plástico de lixo rasgado na rua. Uma junção de coisas inúteis, descartáveis, podres. Coisas de que a vida depende. E que se acabam, como a vida. Decerto, o poema não se resume a uma mera descrição. O lixo é nosso. O lixo somos nós.

Vem a seguir o poema “Depois da Chuva”. Trata-se de um texto encharcado de mágoas e saudades. Contudo, fiel à postura “americana”, não há no texto nenhuma palavra que indique esses sentimentos. O poema é todo construído com elementos externos: a chuva, o chão molhado, as folhas, o frio. Somente a imaginação do sujeito lírico, que admite estar pensando em alguém com quem andaria de mãos dadas, revela o contexto sentimental.

•o•

Em “As Roupas”, o ambiente é ainda mais triste. Trata-se da hora terrível de “abrir os armários/ as gavetas, olhar as roupas, decidir/ o que fazer com elas”. Um momento crucial após a perda de uma pessoa próxima e querida. Também neste caso, não há derramamentos sentimentais. O poema admite: “morremos um pouco” e em silêncio “rimos, choramos”, mesmo sem lágrimas. Mas observe-se um detalhe: não há adjetivos lamurientos nem indicativos de tragédia. Tudo se diz apenas com substantivos: armários, roupas, cheiros — e talvez lágrimas.

No último poema, o apreço aos detalhes começa pelo título, “21:38”, a indicação da hora digital, mostrada no celular da mulher sentada no ponto de ônibus ou, quem sabe, num desses painéis de rua. O momento é de cansaço. Voltar para casa após o trabalho, quase dez horas da noite, na imensidão da “maior cidade da América do Sul”. De fato, como diz o poema, “sabem ser bem tristes, às vezes, / as noites de são paulo”.

•o•

André Caramuru Aubert (São Paulo, 1961) é bacharel e mestre em História pela USP. Publicou três livros de poemas: Se / o que eu vi (2019); As cores refletidas nas lentes de seus óculos escuros (2016); e outubro / dezembro (2015), todos pela Editora Patuá. É também tradutor, além de autor de cinco romances, entre os quais A Cultura dos Sambaquis (Descaminhos) e Poesia Chinesa (SESI-SP Editora).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Depois da chuva


• André Caramuru Aubert


              



Andre Kohn - Les parapluies de Cherbourg
Andre Kohn, pintor russo, Os guarda-chuvas de Cherbourg


SE

como se a cada manhã,
a cada novo dia, o fim,
um fim horrendo, cruel e sujo,
um verdadeiro apocalipse, enfim
(você me entende?),
fosse uma possibilidade bastante real
e concreta.



Andre Kohn - The ruban orange
Andre Kohn, A fita cor de laranja


SOBRE A VIDA

no meio da rua, um grande saco plástico de lixo,
azul. rasgado. os lixeiros devem ter deixado cair.
e das entranhas, do ventre do saco, saem:
uma embalagem de leite longa-vida,
uma caixa de lasanha congelada,
algumas latas de cerveja,
uma garrafa pet de coca-cola,
uma infinidade de outros restos miúdos,
incluindo pedaços sujos de papel higiênico.
todas essas coisas reluziram, um dia, nas prateleiras
de um supermercado. agora estão aqui na rua, mortas.
e os carros desviam o quanto podem, o
medo de furar um pneu.



Andre Kohn - En vacances
Andre Kohn, Férias


DEPOIS DA CHUVA

agora é depois da chuva: o ar lavado, limpo,
no chão as folhas molhadas. e este sol, entre
nuvens, ainda tímido/frio.

você não está aqui, ora, então
só me resta imaginá-la: ao meu lado
[de mãos dadas?], caminhando.

e do chão, insistente, ritmado,
o plec plec plec dos nossos passos
sobre as folhas molhadas.



Andre Kohn - Eliza
Andre Kohn, Eliza


AS ROUPAS

   Depois de “The sadness of clothes”, de Emily Fragos.

a pior parte (uma das piores partes,
pelo menos) é a de abrir os armários,
as gavetas, olhar as roupas, decidir
o que fazer com elas: pegar para si, para algum
parente, doar? porque quando abrimos
os armários e olhamos as roupas e
sentimos o cheiro delas, nós nos
lembramos de tanta coisa, de tantos
momentos. e revivemos um pouco,
e morremos um pouco. e, em
silêncio, de nós para nós mesmos,
rimos, choramos. ainda que não derramemos
lágrimas, choramos. por quê?, ah, porque,
ora, o momento de abrir os armários
e as gavetas, o momento das roupas, é o pior.



Andre Kohn - Morning on the beach
Andre Kohn, Manhã na praia


21:38

sentada no ponto de ônibus uma
mulher, sozinha, mexe no celular. na
esquina, um catador de lixo dobra caixas
de papelão para empilhar na carroça. a luz
branca do poste atravessa as folhas da sibipiruna,
salpicando o asfalto de manchas quase claras.

sabem ser bem tristes, às vezes,
as noites de são paulo.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



André Caramuru Aubert
      in Se / o que eu vi
      Patuá, São Paulo, 2019
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* Antonio Brasileiro, “O Cavaleiro”, in Dedal de Areia (2006)
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* Imagens: quadros do pintor russo Andre Kohn (1972-)