Número 449 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 5 de agosto de 2020

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«As folhas enchem de ffs as vogais do vento.» (Mario Quintana) *

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Mariana Ianelli
Mariana Ianelli



Amigas e amigos,

Desde o final de 2019 eu tinha em mãos dois livros da poeta Mariana Ianelli candidatos a gerar um novo boletim. O primeiro é Manuscrito do Fogo, antologia na qual a autora inclui poemas de oito títulos anteriores.

O outro título, Canções Meninas, é um volume especial. Trata-se de um livro-objeto de capa dura, quadrado, tamanho grande (22 cm x 22 cm) e ilustrado com desenhos de Yolanda Ianelli Fernandez, filha de dois anos da poeta. Lançados em 2019, os dois livros foram publicados pela mesma editora, a porto-alegrense Ardotempo.

Inicialmente, pensei em montar um boletim com poemas de ambos os volumes. Depois, decidi concentrar-me apenas em Canções Meninas, que reúne 24 poemas inspirados na infância.

Embora Mariana Ianelli também já tenha produzido livros para crianças —Dia do Ateliê (2019) e Bichos da Noite (2018) —, Canções Meninas não é exatamente um livro infantil. Trata-se de construções líricas resultantes da convivência inicial da poeta-mãe com o pequeno ser desabrochado de seu próprio corpo.

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Todas as canções meninas são poemas sem título. Como já se tornou uma tradição aqui no poesia.​net, em textos assim usamos como título o primeiro verso, ou parte dele, abraçado por colchetes. Creio que esse recurso torna mais fácil a referência a cada poema.

O primeiro poema da seleta ao lado, [“Vem! Amanhã começa o mundo”], é também o texto que abre o livro. É como um convite à criança que vai ensaiar seus primeiros passos entre nós. “Mas as palavras, meu amor, as palavras / Ainda nem se formaram: só amanhã / Começa o mundo. A primeira pele. / A primeira lua. O primeiro susto.”

No poema seguinte, “[Outra criança acorda na criança]”, a poeta descobre as transformações do pequeno ser observado. Essas mudanças, claro, estão no próprio crescimento da criança, que hora a hora vai incorporando o mundo e, com isso, também o modifica, inventando uma língua e fabulando sobre as coisas, com “a alegria ainda fácil entre os dedos”.

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Em “[Vão dizer que passa num instante]”, a poeta, embevecida, realiza outra descoberta: “o instante é onde mora a criança”. Portanto, a criança que estava aqui ontem não é a mesma agora e é quase certo que não se manterá amanhã. Conclusão: “tudo é um lar cigano”, uma cena em permanente mutação.

Um exercício livre dessas mutações aparece no poema seguinte, “[Esse é o jardim das loucuras consentidas]”. Aqui, “Uma menina nua corre debaixo das nuvens / Ela grita no vento para ir com o vento”. Com o vento, claro, continuam as peregrinações ciganas.

Vem agora “[Ela não quer fechar os olhos]”, o último texto de nossa pequena amostra de Canções Meninas. A criança insiste em não pegar no sono. Mas afinal dorme. De olhos abertos. Bons sonhos mutantes.

Talvez, num primeiro momento, antes de se aproximar de Canções Meninas, o leitor estranhe saber que as ilustrações são assinadas por uma menina de dois anos. Porém, depois de ler os poemas e visualizá-los no contexto gráfico do livro, percebe-se que os desenhos da pequena Yolanda — alguns figurativos, alguns abstratos (pelo menos aos meus olhos) — rimam perfeitamente com a fugacidade dos horizontes infantis sinalizados pelos versos. Mãe e filha acertaram na parceria.

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Mariana Ianelli (São Paulo, 1979) é poeta, contista e ensaísta. Estreou na poesia em 1999, com o livro Trajetória de Antes. Publicou em seguida mais oito coletâneas, entre as quais Duas Chagas (2001); Almádena (2007); Tempo de Voltar (2016); e Canções Meninas (2019). Sua antologia Manuscrito do Fogo (2019) reúne poemas de oito títulos anteriores.

A poeta Mariana Ianelli já esteve aqui neste boletim nas edições n. 289 (2013) e n. 282 (2007).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Desde as primeiras edições de 2017, o boletim pode ser compartilhado facilmente no Facebook, no Twitter e no WhatsApp. Basta clicar nos botões logo acima da foto do poeta.


Canções meninas


• Mariana Ianelli


              



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Katya
Zinaida Evgenievna Serebriakova, russa, Katya (1923)


[VEM! AMANHÃ COMEÇA O MUNDO...]

Vem! Amanhã começa o mundo...
A primeira luz. O primeiro alento.
O primeiro rosto. O que os outros
Vão dizer? As mil palavras de sempre
Talvez também algumas novas
Mas as palavras, meu amor, as palavras
Ainda nem se formaram: só amanhã
Começa o mundo. A primeira pele.
A primeira lua. O primeiro susto.
O homem que disse, uma vez, sabia:
Nascer é mesmo muito comprido.
Nascer, meu amor, não termina nunca.



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Girls at the piano-1922
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Meninas ao piano (1922)


[OUTRA CRIANÇA ACORDA NA CRIANÇA]

Outra criança acorda na criança, ela caminha
Ela fala e sua língua não é a dos homens
Língua de ave, airada, língua que raia, dúctil
A alegria ainda fácil entre os dedos é uma concha
É uma fruta é uma chave é uma folha é uma flauta.



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Girl in pink - 1932
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Garota de cor-de-rosa (1932)


[VÃO DIZER QUE PASSA NUM INSTANTE]

Vão dizer que passa num instante
Mas o instante é onde mora a criança
E nunca passa, é sempre agora uma cabana
De lençol onde ela mora, um buraco na areia
Uma canoa de colo, e nesses olhos que não sabem
O que é pudor, nessas mãos que não temem nem
O fogo, tudo é um lar cigano ao sol, nada é desastre.



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Katya in blue dreee by Christmas tree - 1922
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Katya de azul junto à árvore de Natal (1922)


[ESSE É O JARDIM DAS LOUCURAS CONSENTIDAS]

Esse é o jardim das loucuras consentidas —
Uma menina nua corre debaixo das nuvens
Ela grita no vento para ir com o vento
Até as tulipas-do-gabão cheias de chuva —
Estamos na época das orações naturais.



Zinaida Evgenievna Serebriakova - Peasant girl - 1906
Zinaida Evgenievna Serebriakova, Menina camponesa (1906)


[ELA NÃO QUER FECHAR OS OLHOS]

Ela não quer fechar os olhos, é uma vontade
De estar aqui um pouco mais, só mais um gole,
É essa sede de ver que não se deixa adormecer,
Vontade de que a noite transborde, e seja agora
Mais um jasmim, mais um azul, mais uma volta
O corpo já boia no ar entre dois braços, é uma criança
Que dorme, mas é de olhos abertos que ela dorme...



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Mariana Ianelli
          in Canções Meninas
          Edições Ardotempo, 2019
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* Mario Quintana, “Prosódia”, in Sapato Florido (1948)
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* Imagens: quadros da pintora russa Zinaida Evgenievna Serebriakova (1884-1967)