Número 453 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 30 de setembro de 2020

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«Que diferença faz às flores / se por um segundo as contemplo?» (Fernando Campanella) *

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Sônia Barros
Sônia Barros



Amigas e amigos,

Autora já consagrada na literatura infanto-juvenil, em prosa e verso, a paulista Sônia Barros (Monte Mor, 1968) também se firma na poesia para maiores. Suas duas coletâneas mais recentes, Fios (2014) e Tempo de Dentro (2017), ambas receberam o Prêmio Paraná de Literatura, na categoria Poesia.

Sônia Barros estreou em poesia com o livro Mezzo Voo (Nankin, 2007), que serviu de base para a edição n. 207 deste boletim. O primeiro livro premiado no Paraná também já foi objeto da edição n. 327, em 2015. Agora, o livro-base para o presente boletim é exatamente o segundo premiado, Tempo de Dentro.

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Para montar a pequena seleta desta edição, pincei cinco poemas. O primeiro é “Há em mim mulheres”, uma espécie de hino feminista, que associa as mulheres com suas inúmeras faces e fases, à inspiradora lua. “Há em mim mulheres / escolhendo a face / de uma nova lua”.

Vamos dar um salto na leitura e passar para o terceiro texto, “Domingo (dos outros) pede cachimbo”, também focado numa personagem feminina especial. O título, como se vê, parte da conhecida parlenda que sugere ser domingo o dia de descansar pitando um cachimbo. Mas o poema destaca que não é bem essa a condição da empregada doméstica.

Em “Constatação do Irremediável”, surge a “maresia do tempo” roendo “o leito da memória” até o total esquecimento. Já “Desamparo” apresenta o trágico distanciamento de dois parceiros inseparáveis. E, por fim, o poema “O Corpo” descreve outra separação, também dolorosa, mas sem fatalidades.

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Nascida em Monte Mor-SP em 1968, Sônia Barros formou-se em letras pela Universidade Metodista de Piracicaba e já publicou mais de duas dezenas de títulos infanto-juvenis. Seus livros de poesia para adultos são Mezzo voo (2007), Fios (2014) e Tempo de Dentro (2017), os dois últimos vencedores do Prêmio Paraná de Literatura na categoria Poesia.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTOS - LIVE

Com a Corda no Pescoço
• André Nigri

André Nigri - Com a corda no pescoçoO jornalista e ficcionista mineiro André Nigri lança o livro de contos Com a Corda no Pescoço, volume que traz quatro histórias curtas, todas perpassadas pelo tema dos desencontros amorosos. Em tempos de pandemia, o lançamento é virtual, marcado por um bate-papo ao vivo no canal Primeira Prateleira, no YouTube.

Quando:
Quinta-feira, 01/10/2020,
às 20h

Onde:
Canal Primeira Prateleira
YouTube
Bate-papo ao vivo do autor com Myrian Naves, da revista InComunidade; Carlos Machado, deste boletim; Humberto Conzo, do Primeira Prateleira; João Barile, do Suplemento Literário de MG; e Marcelo Nocelli, da Editora Reformatório.



IEB/USP e Oficina de Leitura Guimarães Rosa
• Semana Roseana Corpo de Baile

Semana Roseana

O IEB/USP e a Oficina de Leitura Guimarães Rosa promovem a Semana Roseana Corpo de Baile, com programações diárias veiculadas no canal da Oficina no YouTube.

Quando:
De 28/09 a 02/10/2020

Onde:
Canal da Oficina de Leitura Guimarães Rosa
no YouTube




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A face de uma nova lua


• Sônia Barros


              



Ikenaga Yasunari - Honami-2015
Ikenaga Yasunari, pintor japonês, Honami (2015)


HÁ EM MIM MULHERES

    (para Maria Valéria Rezende)

Lua ineludível:
inúmeras faces
que tanto me despem
quanto me mascaram.

Fases tão diversas
e, no entanto, sempre
— sempre — a mesma lua:
muitas e nenhuma.

Ao meu lado um cão
gane o tempo todo.
O seu nome é medo,
sua voz é não;

Há em mim mulheres,
todas com seus cães
ganindo nos becos
deste corpo orbívago.

Há em mim mulheres
ensaiando ser
mais fortes que o medo,
maiores que o cão.

Há em mim mulheres
escolhendo a face
de uma nova lua.
Outras, o interlúnio.

Mulheres me habitam
feitas de coragem
embora nem saibam
que podem vencer.

Eu também duvido
vivo a sucumbir
mas depois revivo:
um dia seremos.



Ikenaga Yasunari - Shima-2006
Ikenaga Yasunari, Shima (2006)


CONSTATAÇÃO DO IRREMEDIÁVEL

em silêncio
dentes da maresia
do tempo
roem
o leito da memória

dias passam
a ser
retratos
carcomidos

    e depois
    não serão
    sequer

    vestígios do vivido.



Ikenaga Yasunari - Natsuko-2012
Ikenaga Yasunari, Natsuko (detalhe, 2012)


DOMINGO (DOS OUTROS) PEDE CACHIMBO

cozinha para os patrões às segundas, terças,
   [quartas, quintas, sextas e aos sábados;
lava a louça dos patrões às segundas, terças,
   [quartas, quintas, sextas e aos sábados;
limpa a casa dos patrões às segundas, terças,
   [quartas, quintas, sextas e aos sábados;
lava a roupa dos patrões às segundas, quartas
                [e sextas;
passa a roupa dos patrões às terças, quintas e
               [aos sábados;
se tem festa ou hóspedes na casa, os patrões a
           [chamam nos feriados.

domingo
seria
seu dia
de folga
mas
continua
na lida
em casa com o marido e os cinco filhos;
limpa, lava, passa, cozinha: cuida
de quem fuma cachimbo
o dia inteiro.



Ikenaga Yasunari-Moe-2013
Ikenaga Yasunari, Moe (2013)


DESAMPARO

Viviam os dois numa espécie
de invisível antecâmara do real.

Sempre juntos, inclusive nessa
quarta-feira, como em todas
as outras quartas-feiras e em todos
os dias dos últimos dez anos.

Na quase realidade ou terceira
margem em que viviam, partilhavam:
comida, quando havia; fome,
na maioria das vezes; afeto, sempre.

Nessa manhã não fazia frio nem calor.
Estavam bem e até alimentados.

Foi sem nenhum aviso
— nem mesmo do sexto sentido
de um deles, que costumava alertá-los
que tudo aconteceu.

À dor aguda no peito e a um grito
seco, seguiu-se a morte.
No meio da calçada, já fora
da antecâmara, o corpo inerte.

O homem seguiu na maca;
depois, na ambulância.

E a separação se fez concreta
na repentina ausência.
A escorrer pela sarjeta,
um miado quase inaudível.



Ikenaga Yasunari - Shima-2003
Ikenaga Yasunari, Shima (2003)


O CORPO

Nenhum dos dois
nunca soube explicar
— mesmo dez anos depois,
não sabem.
Tampouco tiveram
coragem de olhar
para baixo e ver
        o corpo
        estatelado
        em meio
        aos estilhaços.

Ele se mudou, ela ficou
no apartamento-trampolim
conservando por algum tempo
janelas e olhos fechados.

Nas raras vezes
em que se encontram,
quase sempre por acaso,
evitam palavras
ou mesmo olhares
que possam trazer
a dor à tona.

De vez em quando
ainda se lembram,
mas cada vez com menos
nitidez,
daquela tarde
de chuva
em que viram, perplexos,
saltando da janela
para o abismo:
a taça de vinho tinto,
onde boiava,
já morto,
o amor.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Sônia Barros
      •  Todos os poemas:
      in Tempo de Dentro [Prêmio Paraná 2017]
      Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2018
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* Fernando Campanella, "Que Diferença Faz às Flores"
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* Imagens: quadros do pintor japonês Ikenaga Yasunari (1965-)