Número 456 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 11 de novembro de 2020

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«Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos, / e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.» (Eugenio Montale) *

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Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska



Amigas e amigos,

Nesta edição o boletim retorna, mais uma vez, à poesia da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 1996. A poeta já tem três livros traduzidos no Brasil. Primeiro, foram as coletâneas Poemas (2011) e Um Amor Feliz (2016), ambas traduzidas pela professora paranaense de origem polonesa Regina Przybycien. Agora, acaba de ser lançado o livro Para o Meu Coração num Domingo (2020), no qual  Regina Przybycien divide a tradução com Gabriel Borowski. Os três volumes foram publicados pela Companhia das Letras.

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Este é o terceiro boletim dedicado a Wislawa Szymborska. O primeiro foi a edição n. 265, que saiu dois anos antes da estreia oficial dela no Brasil. Portanto, o poesia.​net foi um dos primeiros espaços por aqui a divulgar o trabalho da poeta. Para montar o boletim, reuni traduções avulsas na internet e até me aventurei a traduzir um poema, “Pi”, com base em traduções para outros idiomas e a ajuda de um amigo jornalista descendente de poloneses.

A segunda aparição de Wislawa Szymborska nesta página deu-se após a publicação de sua segunda coletânea, Um Amor Feliz, edição n. 372, em 2017.

Agora, a miniantologia ao lado baseia-se no livro Para o Meu Coração num Domingo. Como Wislawa Szymborska já é de casa, vou-me permitir não fazer um resumo biográfico da autora. Quem não leu os boletins anteriores, pode consultá-los recorrendo aos links acima. Neles há razoáveis informações sobre a vida da poeta.

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Após a leitura da terceira coletânea de Wislawa Szymborska lançada no Brasil, apenas consolidei minha admiração por essa poeta excepcional. Wislawa escreve diferente. Como já disse aqui nos outros dois boletins, sua base é a prosa. Nos poemas dela não há metáforas, metonímias, paralelismos — enfim, recursos de que os poetas tradicionalmente lançam mão para construir seus artefatos.

Leia-se, por exemplo, o poema “Relato do Hospital”. Os amigos, constrangidos, decidem no palitinho qual deles vai visitar no hospital o amigo desenganado. O contexto, claro, é pungente, triste. Mas, por si só, nenhuma palavra do texto — no qual existe apenas um único adjetivo: “faminto”, aplicado a um cão — sugere essa tristeza. A montagem do relato é que constrói a densidade do clima.

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Mais acima, escrevi que Wislawa Szymborska não costuma usar paralelismos. Esse relato de visita ao hospital me desmente. Há nele pelo menos duas sequências de frases que repetem uma mesma estrutura. Contudo, não se trata de efeitos, digamos, “poéticos”. São, na verdade, um expediente de fala comum para quem conta um caso. Aquele que foi ao hospital narra sobre o amigo doente: “Não me pediu para ficar nem para sair. / Não perguntou de ninguém de nossa mesa. / Nem de você, Bolek. Nem de você, Tolek. Nem de você, Lolek”. Observe-se a intimidade: Bolek, Tolek e Lolek são apelidos (diminutivos) para Boleslaw, Antoni e Karol. O primeiro é um nome tipicamente polonês e os outros dois são equivalentes de nossos conhecidos Antônio/Toninho e Carlos/Carlinhos.

No texto seguinte, “Prospecto”, o sujeito lírico é um remédio tranquilizante, que dá conselhos ao seu(sua) usuário(a). Não se pode deixar de destacar o refinado bom humor da poeta, que aí lança mão de iironias demolidoras. Esses traços também aparecem no poema “Contributo à Estatística”. O texto faz um exercício de classificação numérica dos seres humanos, conforme seus atributos: os “prontos para ajudar”; os “dispostos a admirar sem inveja”; os “gatos escaldados” etc.

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Nos textos seguintes, observa-se uma leve mudança do ponto de vista. Agora entram em foco situações, digamos, mais tradicionais. O primeiro exemplo está no poema “Perspectiva”, que descreve o encontro de um homem com uma mulher que “por um breve tempo / amaram-se para sempre”. Embora a circunstância seja conhecidíssima como pano de fundo para milhares de outros poemas, filmes, contos, romances, o texto extrai substância poética desse fato de uma forma bastante inusitada. Confira.

Em outra cena trivial das cidades grandes, o poemeto “No Aeroporto” mostra agora um casal ativo (não ex-amantes) que se reencontra após longa separação. Aqui, o adjetivo “longa” é arbitrário: a duração do tempo pode ser real — medida em dias, meses, anos —, como apenas psicológica. Quando há paixões vulcânicas, dois dias já são mais que uma eternidade. Também não se sabe quem chega de viagem, quem está esperando. Pode-se pensar, outra vez, numa dupla homem/mulher, mas o texto não diz. Portanto, pode ser qualquer tipo de casal. Pouco importa. “Até que enfim! Até que enfim!”, os dois excl/amam.

A seleção de poemas termina com “A Mão”. O que se tem aí é quase um resumo anatômico e neurofisiológico desse órgão terminal de nossos braços: “Vinte e sete ossos / trinta e cinco músculos” etc. Nos versos finais, o poeminha faz a mão saltar, sem aviso, dos compêndios médicos para a atividade humana e suas criações no campo social. E tudo se faz com os cinco dedos da mão.

Surpreendente Wislawa.

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BIOGRAFIA

Há ainda um quarto livro, também lançado este ano — não de, mas sobre Wislawa Szymborska. Trata-se de uma biografia da autora: Quinquilharias e Recordações, escrita pelas jornalistas polonesas Anna Bikont e Joanna Szczesna (Editora Âyiné; tradução de Eneida Favre).


SOBRE A TRADUÇÃO

A tradutora paranaense Regina Przybycien, responsável pelas três coletâneas de Wislawa Szymborska no Brasil, concede uma entrevista ao poeta paulista Tarso de Melo, publicada no site da revista Cult. Ela conversa sobre a linguagem e fatos da vida da nobelizada escritora.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Com os cinco dedos da mão


• Wislawa Szymborska


Tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowski

              



Daniel Greene - Caroline
Daniel Greene, americano, Caroline


RELATO DO HOSPITAL

Tiramos a sorte no palito para ver quem ia vê-lo.
Fui sorteado. Levantei-me da mesa.
Já estava chegando o horário de visitas no hospital.

Não respondeu nada quando o cumprimentei.
Quis tomar a sua mão — ele a retirou
como um cão faminto que não entrega o osso.

Parecia se envergonhar de morrer.
Não sei o que se diz para alguém como ele.
Nossos olhares divergiam como numa fotomontagem.

Não me pediu para ficar nem para sair.
Não perguntou de ninguém da nossa mesa.
Nem de você, Bolek. Nem de você, Tolek. Nem de você, Lolek.

Minha cabeça começou a doer. Quem está morrendo para quem?
Elogiei a medicina e as três violetas num copo.
Falei sobre o sol e fui me apagando.

Que bom que tem escadas por onde se desce correndo.
Que bom que tem um portão que se abre.
Que bom que vocês me esperam junto à mesa.

Cheiro de hospital me dá náusea.



Daniel Greene - Chris
Daniel Greene, Chris


PROSPECTO

Sou um tranquilizante.
Funciono em casa,
atuo no escritório,
presto exames,
compareço à audiência,
colo com cuidado as canecas quebradas —
basta me tomar,
colocar sob a língua,
basta me engolir
com um pouco de água.

Sei como lidar com a infelicidade,
suportar más notícias,
diminuir a injustiça,
iluminar a ausência de Deus,
combinar com a face o chapéu de luto.
O que está esperando —
confie na piedade química.

Você ainda é moço (moça),
devia se arranjar de algum modo.
Quem disse
que a vida deve ser vivida com coragem?

Me dê o seu precipício —
eu o forrarei com o sono,
você ficará grato (grata)
por poder cair com os dois pés firmes.

Me venda a sua alma.
Ninguém mais vai comprar.

Outro diabo já não há.



Daniel Greene - Woman with a pearl earring
Daniel Greene, Mulher com brinco de pérola


UM CONTRIBUTO À ESTATÍSTICA

De cada cem indivíduos

os que sabem tudo melhor
— cinquenta e dois;

inseguros de cada passo
— quase todo o resto;

prontos para ajudar
desde que não demore muito
— até quarenta e nove;

sempre bons,
porque não sabem ser de outro jeito
— quatro, bem, talvez cinco;

dispostos a admirar sem inveja
— dezoito;

vivendo em constante medo
de alguém ou de algo
— setenta e sete;

com aptidão para a felicidade
— vinte e poucos no máximo;

inofensivos individualmente,
ferozes na multidão
— por certo mais que a metade;

cruéis
quando as circunstâncias exigem
— melhor não saber
nem por aproximação;

gatos escaldados
— não muitos mais
do que os não escaldados;

os que não levam nada da vida além de coisas
— quarenta,
embora eu quisesse estar enganada;

encolhidos, doloridos
e sem lanterna na escuridão
— oitenta e três,
mais cedo ou mais tarde;

dignos de compaixão
— noventa e nove;

mortais
— cem de cem.
Número que até aqui segue inalterado.



Daniel Greene - Young girl - 42nd st.
Daniel Greene, Moça — Rua 42


PERSPECTIVA

Cruzaram-se como estranhos,
sem um gesto, uma palavra,
ela indo em direção à loja,
ele para o carro.

Talvez por pânico
ou por distração,
ou por deslembrança
de que por um breve tempo
amaram-se para sempre.

Não há garantia, aliás,
de que fossem eles.
Talvez de longe sim,
mas de perto de jeito nenhum.

Eu os avistei da janela,
e quem olha do alto
é quem mais facilmente se engana.

Ela sumiu atrás de uma porta de vidro
ele sentou-se ao volante
e partiu depressa.
Portanto, nada aconteceu
mesmo que tenha acontecido.

E eu, só por um instante
certa do que vi,
procuro agora num poeminha casual
persuadi-los, caros leitores,
de que isso foi triste.



Daniel Greene - Robert Beverly Hale
Daniel Greene, Robert Beverly Hale


NO AEROPORTO

Correm um para o outro de braços abertos,
exclamam sorridentes: Até que enfim! Até que enfim!
Ambos com roupas pesadas de inverno
gorros grossos,
cachecóis,
luvas,
botas, mas apenas para nós.
Porque para eles mesmos — já nus.


A MÃO

Vinte e sete ossos,
trinta e cinco músculos,
cerca de duas mil células nervosas
em cada ponta dos nossos cinco dedos.
Isso é o bastante
para escrever Mein Kampf
ou As aventuras do ursinho Pooh.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Wislawa Szymborska
      •  Todos os poemas:
      in Para o meu coração num domingo
      Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien e Gabriel Borowski
      Cia. das Letras, São Paulo, 2020
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* Eugenio Montale, in Ossos de Sépia (1925), trad. Renato Xavier
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* Imagens: quadros do pintor estadunidense Daniel Greene (1934-2020)