Número 458 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

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«Poesia é sempre assim: / Uma alquimia de fetos, / Um lento porejar / De venenos sob a pele.» (Myriam Fraga) *

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João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto



Amigas e amigos,

Senhoras e senhores; ilustres damas e gentis cavalheiros; jovens senhoritas e gentis mancebos: tenho a grata satisfação de anunciar que este boletim se torna maior de idade em 12 de dezembro de 2020, data em que completa 18 anos em circulação. Fica, pois, registrado o aniversário do boletim. Mas, neste annus horribilis de 2020, o momento não é propício para festas e celebrações.

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É importante ainda destacar que este é o último boletim de conteúdo poético do ano. O poesia.​net entra em recesso. Esperamos voltar com mais poesia em fevereiro de 2021. Dentro do possível, um bom fim de ano a todxs xs leitorxs.

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Apesar do ambiente nefasto marcado pela pandemia e pelo desgoverno que destrói o Brasil, o ano de 2020 marca o centenário de alguns grandes nomes da literatura brasileira. Entre esses nomes está a romancista e contista Clarice Lispector (1920-1977), que completaria um século exatamente neste 10/12. Em homenagem à escritora, o Instituto Moreira Salles põe no ar novo site nessa data: claricelispector.ims.com.br. O espaço reúne fotos, áudios, vídeos, manuscritos e estudos sobre a autora.

Em 2020 também se celebram os 100 anos da poeta, contista, romancista e tradutora Ruth Guimarães (1920-2014). Nascida em Cachoeira Paulista-SP, publicou dezenas de obras, entre as quais os romances Água Funda (1946) e os Os Filhos do Medo (1950) e Contos de Cidadezinha (1996). Ruth Guimarães foi a primeira escritora negra no Brasil que conseguiu projetar-se nacionalmente desde o lançamento de seu livro de estreia, Água Funda.

Outro escritor de quem se comemora o centenário em 2020 é o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Naturalmente, as celebrações dos 100 anos de João Cabral ficaram prejudicadas pelo distanciamento social imposto pela pandemia. Assim, muito do que se fez resumiu-se à internet: palestras, seminários, artigos nos sites e portais. Mas há também novidades livrescas.

Merece destaque a nova edição da Poesia Completa do autor. Lançado pela Editora Alfaguara, o volume (oferecido em papel e no formato e-book) contou com “organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas” do poeta e acadêmico Antonio Carlos Secchin, um dos mais destacados estudiosos da obra do autor pernambucano. Nessa tarefa Secchin contou com a colaboração de Edneia R. Ribeiro.

O mesmo Secchin também relançou este ano a reunião de seus estudos cabralinos. A obra, que antes se chamava Uma Faca Só Lâmina (Cosac Naify, 2014), agora, ampliada, passou a chamar-se João Cabral de Ponta a Ponta, publicada pela Cepe Editora, de Pernambuco. Apresentado inicialmente em formato digital, o livro também será distribuído em papel.

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Mas passemos à poesia. Nascido em 12/12/2002, o poesia.​net estreou com o poeta João Cabral de Melo Neto e seu poema “O Cão sem Plumas”. Nesta edição, para marcar os 18 anos do boletim e os 100 anos de João Cabral, retornamos ao mesmo poema. Desta vez, no entanto, você encontra ao lado somente a transcrição da parte IV do poema, seu trecho final, chamado “Discurso do Capibaribe”. Para ler o poema completo, por favor, retorne à edição n. 1.

Publicado originalmente em 1950, “O Cão sem Plumas” é anterior à peça em versos Morte e Vida Severina, escrita em 1954-55. Esse cão despossuído de adornos representa um dos momentos mais altos da criação cabralina.

O cachorro desemplumado é a metáfora de Cabral para o rio Capibaribe e sua cinzenta convivência com os homens-caranguejos, que também são cães sem plumas. Como lembra o poema (na parte II, não transcrita aqui), “Difícil é saber/ se aquele homem/ já não está/ mais aquém do homem”.

Antonio Carlos Secchin explica a origem do título: “é metáfora do Rio Capibaribe, que atravessa o Recife, e dos habitantes pobres que habitam às suas margens, sugados e explorados até naquilo que não possuem — daí o cão sem plumas. Primeira grande incursão de Cabral no domínio da poesia engajada, o longo poema é um notável exemplo de obra que concilia uma visão complexa do tecido social a uma urdidura igualmente complexa do tecido verbal”.

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Do rio Capibaribe e suas criaturas sobreviventes, saltamos para algumas novidades, extraídas da nova Poesia Completa de Cabral. O volume traz um apêndice no qual constam textos dispersos e inéditos do poeta. Daí extraí três poemas. Os dois primeiros são dispersos; e o último, um inédito.

Conforme nota dos organizadores, os textos “Poucos sabem, mas existe um baobá no Recife” e “Pedem-me um poema” apareceram no primeiro número de Terceira Margem, Revista do Centro de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1998, um ano antes do falecimento do poeta.

No poema sobre o baobá recifense (que de fato está lá, no Jardim do Baobá, à beira do Capibaribe), Cabral tenta supor como aquela árvore tipicamente africana (segundo ele, originária da região subsaariana do Sahel) foi parar em Pernambuco. Seja como for, ele acredita que esse baobá apernambucanou-se, virou um “antibaobá” e até fala a língua popular local, o caçanje, assim como a mangueira e a jaqueira. (Existe também um baobá na ilha de Paquetá, no município do Rio de Janeiro, conhecido como Maria Gorda. Essa Maria deve falar com sotaque carioca.)

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Em “Pedem-me um poema”, o poeta, acometido de cegueira em seus últimos anos, praticamente diz que não pode mais escrever. “Um poema se faz se vendo, / um poema se faz para a vista”, argumenta ele. E, pernambucano renitente, mais uma vez compara o poema a um rio — “por exemplo, um Capibaribe”. E ainda insiste: “Poema é coisa de ver, / é coisa sobre um espaço, / como se vê um Franz Weissmann, / como não se ouve um quadrado”.

Nestes últimos versos, Cabral repete conceitos que lhe são muito caros: a visualidade do poema, sua espacialidade e a referência com outras artes — aqui ele cita o escultor austríaco-carioca Franz Weissmann (1911-2005). O poeta também insiste em uma de suas idiossincrasias: a de que o poema não é para ser lido oralmente. Daí porque se vê uma obra de Weissmann, mas “não se ouve um quadrado”.

Extraído dos inéditos, o último poema, “Entrevista”, traz a data de 08/07/1987. Nesses versos, dispostos na forma de perguntas e respostas, o poeta — supostamente o entrevistado — apresenta, mais uma vez, sua visão do que seja a poesia. Ao lado, trancrevo apenas os oito versos iniciais.

Cem vezes: viva João Cabral!

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João Cabral de Melo Neto já esteve aqui em outras edições:

poesia.​net  n. 325
poesia.​net  n. 1


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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poesia.​net, 18 anos

Visite o painel com todos os poetas publicados pelo boletim em seus 18 anos. Clique no selo abaixo.




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100 vezes João Cabral


• João Cabral de Melo Neto


              



André Kohn - Sisters-8
Andre Kohn, russo, Irmãs 8


IV. DISCURSO DO CAPIBARIBE


Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).



André Kohn - Il bacio
Andre Kohn, Il Bacio


POUCOS SABEM, MAS EXISTE
UM BAOBÁ NO RECIFE

Existe um baobá no Recife,
árvore de alguma semente
caída de um vago botânico,
de seu bauzinho de flandres.
(Daqui decerto levou plantas
mais úteis que o pouco que rende
o baobá que dá sombra à praça
de quase nenhum transeunte.)

*

Esse baobá, que por acaso
cresceu em terreno de mangues,
pôs-se a florir pernambucano
como florescemos caçanje.
Cá, floresceu em recifense,
com esse sotaque, esse dengue,
que fala quem cresceu na lama
ou a deixou filtrar-se no sangue.

*

Como, do Sahel, ele pode
a alma úmida do recifense?
Pois como mangueira ou jaqueira
fala a mesma língua da gente:
que é enfolhando a cabeleira,
dando essa sombra inutilmente
à rede que não se ousa armar
frente às janelas presidentes.

*

Os baobás são do Sahel seco.
O nosso leva a vida que antes
baobá não viveu, pois dá sombra
(o que não deu nenhum parente).
No Sahel, é uma árvore calva.
É sem copa seu grande ventre.
Só no Recife pôde ser
antibaobá, ou idealmente.


André Kohn - Il bacio
Andre Kohn, Um guarda-chuva amarelo para dois


“PEDEM-ME UM POEMA”

Pedem-me um poema,
um poema que seja inédito,
poema é coisa que se faz vendo,
como imaginar Picasso cego?
Um poema se faz se vendo,
um poema se faz para a vista,
como fazer o poema ditado
sem vê-lo na folha inscrita?
Poema é composição,
Mesmo da coisa vivida,
um poema é o que se arruma,
dentro da desarrumada vida.
Por exemplo, é como um rio,
por exemplo, um Capibaribe,
em suas margens domado
para chegar ao Recife,
onde com o Beberibe,
com o Tigipió, Jaboatão,
para fazer o Atlântico,
todos se juntam a mão.
Poema é coisa de ver,
é coisa sobre um espaço,
como se vê um Franz Weissmann,
como não se ouve um quadrado.


André Kohn - Bff-11
Andre Kohn, Melhores amigas para sempre-11


ENTREVISTA

― Afinal, o que que é poesia?
― O que te dá taquicardia:
isso que te surpreende o pulso,
igual que o surpreende um susto,

que ao pulso de todos os dias
entreabre a janela vazia
que te faz ver coisa que vias
mas que até então tu não viras.

[...]



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



João Cabral de Melo Neto
      •  Todos os poemas:
      in Poesia Completa
      organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas:
      Antonio Carlos Secchin, com Edneia R. Ribeiro
      Alfaguara, Rio de Janeiro, 2020
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* Myriam Fraga, “Arte Poética”, in Femina (1996)
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* Imagens: quadros do pintor russo Andre Kohn (1972-)