Número 465 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 12 de maio de 2021

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«Outono é a estação em que ocorrem tais crises, / e em maio, tantas vezes, morremos.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Marina Rabelo
Marina Rabelo



Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net recebe pela segunda vez a poeta cearense-potiguar Marina Rabelo. Por ocasião de sua primeira visita a este jornal poético — na edição 374, de 2017 — Marina havia acabado de lançar o livro de poemas Das coisas que larguei na calçada (Caravela, 2016).

Agora, ela retorna, trazida por uma nova coletânea, Stela e outros poemas de amor (Offset, Natal-RN, 2021). O título oferece uma perfeita indicação do conteúdo desse livro. A primeira parte contém o longo poema “Stela”, homenagem da autora à memória de sua avó materna, de Fortaleza-CE. Há ainda duas outras divisões no livro: “Cintilância Escuridão” e “Incendiário”, sempre em referência ao amor.

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Para este boletim, selecionei cinco textos de Stela e outros poemas de amor. O primeiro é o trecho final de “Stela”, a avó sobre quem a poeta diz: “com seu silêncio / de nuvem doce / deu-me o olhar atento / para a vida”.

No texto seguinte, “[Levei meus olhos tristes]” — poema sem título, aqui referido pelo primeiro verso entre colchetes —, o sujeito lírico, certamente magoado por espinhos de amor, conduz seus olhos “marejados para ver o mar”. Este poema integra o bloco “Cintilância Escuridão”.

O próximo poema, “Não limpe os pés antes de entrar”, afasta-se desse tom melancólico. Agora, cheio de esperanças, o indivíduo que fala (não há um gênero explícito no texto) espera a pessoa amada de portas abertas. Que venha e “Entre com a lama, a grama, a poeira / e a areia do mar”. E mais: como o título anuncia, não precisa nem mesmo limpar os pés. Este texto também pertence ao bloco “Cintilância Escuridão”.

Os dois últimos poemas ao lado provêm da divisão dedicada ao amor “Incendiário”. Em “[Na superfície]”, o tom é realmente de conflito e desencontro entre amantes: “teus dedos covardes / apontando todas as armas”. Já em “[Cheguei à conclusão]”, a voz poética procura esquecer o parceiro, mas acredita que isso seja impossível.

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Uma característica marcante na poesia de Marina Rabelo são os poemas curtos. É raro encontrar em seus livros algum texto cuja extensão vá além de uma página. Em Stela e outros poemas de amor, como foi dito, “Stela” representa um poema longo, que ocupa metade do livro. Mesmo assim, as partes que compõem essa memória afetiva são basicamente formadas por trechos bem curtos.

Em linguagem ágil e tendente ao coloquial, a autora compõe seus poemas com as antenas ligadas para as coisas triviais, como em “o cheiro do asfalto, do ônibus lotado / e do pastel de carne com suco de maracujá” (“Não limpe os pés ao entrar”) ou “o arame farpado da desilusão” ([“Na superfície”]).

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Nascida em Fortaleza-CE (1981), mas criada em Natal-RN, a poeta Marina Rabelo considera-se uma potiguar. Formada em engenharia química pela UFRN, já publicou quatro livros de poesia: Stela e outros poemas de amor (2021); Das coisas que larguei na calçada (2016); Livro de sete cabeças (2016); e Por cada uma (2011).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Não limpe os pés ao entrar


• Marina Rabelo


              

Bela de Kristo - Porto
Bela de Kristo, pintor húngaro, Porto


STELA

a senhora
cheia de delícias
num vestido azul-solar
com seu silêncio
de nuvem doce
deu-me o olhar atento
para a vida

e eu enxerguei poesia



Bela de Kristo - Goupe de jazz-1990
Bela de Kristo, Grupo de jazz (1990)


[LEVEI MEUS OLHOS TRISTES]

levei meus olhos tristes
e marejados para ver o mar
eles se ondularam em
segredos
só eles sabem o que
carregamos dentro
o que se carrega para o fundo



Bela de Kristo - A.quatre.mains-1966.jpg
Bela de Kristo, A quatro mãos (1966)


NÃO LIMPE OS PÉS ANTES DE ENTRAR

Entre com a lama, a grama, a poeira
e a areia do mar.

Entre com o barulho das ruas, do samba
e dos versos do poeta de mesa de bar.

Entre com o cheiro do asfalto, do ônibus lotado
e do pastel de carne com suco de maracujá.

A porta está aberta,
pode entrar: eu quero minha alma suja
e feliz.



Bela de Kristo - Aperitif
Bela de Kristo, Aperitivo


[NA SUPERFÍCIE]

na superfície
do nosso encontro
ficaram teus medos.
teus dedos covardes
apontando todas as armas,
o arame farpado da desilusão
traçando longos voos de volta.
os riscos caíram rasos
sobre nossos pés.
aquele velho c'est la vie
enquanto eu só queria, baby,
meu corpo deslizando sobre o teu
e o cheiro do talvez, quem sabe.



Bela de Kristo - Seul.a.paris-1958.jpg
Bela de Kristo, Sozinho em Paris (1958)


[CHEGUEI À CONCLUSÃO...]

cheguei à conclusão de que não há vinho
que me faça esquecer você,
pois todas as uvas têm o seu nome.

sinto-as redondas e aflitas
na ponta da minha língua.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Marina Rabelo
      •  Todos os poemas:
      in Stela e Outros Poemas de Amor
      Offset Editora, Natal, 2021
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* Carlos Drummond de Andrade, "Tarde de Maio", in Claro Enigma (1951)
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* Imagens: quadros de Bela de Kristo (1920-2006), pintor húngaro