Número 469 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 14 de julho de 2021

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«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *

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Renata Pallottini
Renata Pallottini



Amigas e amigos,

Eu já havia preparado um boletim para esta data quando recebi a notícia do falecimento da poeta paulistana Renata Pallottini, ocorrido em 08 de julho. Decidi, então, reprisar a edição n. 432, de 2019, a última em que a autora apareceu nesta página.

Embora não seja um fato evidente, Renata Pallottini foi uma pessoa muito importante para este boletim. Dei notícia disso no site comemorativo dos 15 anos da publicação. Além de sugerir novos poetas, ceder material ao boletim (fotos e livros desses poetas), Renata tinha o hábito de comentar cada edição do poesia.​net. Nos comentários, ela vibrava com trechos que julgava criativos dos poetas.

Em 2010, o poesia.​net parou de circular por algum tempo. No retorno da publicação, Renata manifestou-se publicamente, saudando o boletim.

Assim, por todos os seus méritos públicos (conhecidos e celebrados), e também por essas relações pessoais, ligadas a esta página, decidi reeditar este boletim in memoriam de nossa querida amiga.

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A poeta, dramaturga, tradutora, ensaísta e professora universitária Renata Pallottini (São Paulo, 1931-São Paulo, 2021) é a autora em destaque nesta edição. Esta é a terceira vez que ela aparece neste espaço. Vem agora com versos do livro Poesia Não Vende, publicado pela Hucitec Editora em 2016.

Na quarta capa do livro, a própria autora ensaia uma pequena indicação de seu conteúdo. “Meu livro agora, este Poesia não vende, tem muita ironia, medo e espanto, saudade e, surpreendentemente, esperança”.

De fato, a ironia — o primeiro item listado — é presença fundamental nesta coletânea de poemas, a começar pelo próprio título. Com ele a poeta faz troça da consagrada afirmação que reduz a poesia a uma iniciativa de caráter puramente mercantil.

É como se retrucasse: “Muito bem, não vende. E daí?” Afinal, tanto a poeta como nós sabemos que o valor real da poesia está em outro lugar, talvez nos outros itens citados, como ironia, medo, espanto, saudade e esperança.

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Para este boletim, selecionei sete poemas de Poesia Não Vende. O primeiro deles, “No Rio das Velhas”, confirma o anúncio de ironia. Aqui, a poeta brinca com o nome do histórico rio mineiro, o maior afluente do São Francisco, conhecido pela sua localização numa região onde foram encontrados ouro e pedras preciosas.

No poema, o sujeito lírico — mulher que é um óbvio alter ego da autora — diz ter achado no Rio das Velhas uma pedra preciosa. Mas o objeto, certamente de arestas afiadas, lhe fere as mãos. Assustada, a inexperiente garimpeira devolve o objeto ao rio. A conclusão é uma tirada na qual a autora faz um chiste com a própria idade.

No poema seguinte, “O Que Eu Proponho”, o tom passa a ser de afeto e saudade, com uma tranquila declaração de amor, “sem ilusões”. Em “Sogno 123”, as notas dominantes vêm da solidão e da saudade. Há mesmo um certo ritmo de tango: “Neste quarto que não há / Canto um tango que não sei / Pra você, que já não está”.

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Vem a seguir “No Oftalmologista”, um epigrama doidamente irônico. [Curiosidade: eu queria escrever doídamente (doloridamente), mas confesso que não sei como se faz isso. Uns cinquenta anos atrás, usava-se o acento grave: doìdamente.]

Não sei dizer exatamente por quê, mas o poema “A Rua” me traz ecos da velha cantiga de roda “Se esta rua fosse minha”. Nele, a nostalgia de um tempo que passou é (mal) disfarçada com frases de tom depreciativo. E, no final, diz a poeta, a rua não é mais minha e eu também não sou mais aquela.

Dá também para lembrar, no mesmo tom melancólico, o romanceiro de García Lorca: “Mas eu já não sou eu mesmo / nem mais é minha esta casa”. Os poetas dão-se as mãos na tristeza.

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No poema “Viesse Logo a Noite”, o registro melancólico assume uma nota mais aguda, tendente ao desespero. Aqui, pede-se que venha a noite completa, um tempo que abolisse as guerras e no qual as pessoas todas se amassem. Ou, pior, uma noite dos silêncios e das feras.

Para fechar a seleção, o poemeto “De Uma Formiga” retoma a inflexão irônica.

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NOTÍCIA DE RENATA PALLOTTINI

Formada em filosofia pela PUC-SP em 1951, Renata Pallottini também concluiu o curso de direito na USP em 1953. Depois, em Paris, começa a estudar teatro em 1959. De volta a São Paulo, entra na Escola de Arte Dramática da USP e faz os cursos de dramaturgia e crítica.

Inicia sua produção de textos para treatro em 1960, com a peça A Lâmpada. Depois, criou vários outros espetáculos cênicos. Em 1967, a peça Pedro Pedreiro, com texto dela e música de Chico Buarque, é levada à Colômbia. No ano seguinte, Renata Pallottini traduz o famoso musical Hair, dos americanos James Rado e Gerome Ragni, com música de Galt MacDermot. O trabalho da autora nessa área estende-se à televisão, ao cinema e ao ensino universitário.

Em poesia, ela estreou em 1952 com o livro Acalanto, seguido em 1956 por O Monólogo Vivo, primeiro título incluído em sua Obra Poética, de 1995, que contém 14 livros. Depois disso, ainda na poesia, ela publicou Um Calafrio Diário (2002) e Poesia Não Vende (2016). Ademais, há livros de memória, biografia, ensaios de dramaturgia e até um romance, Nosotros.

Sobre a Renata poeta, Carlos Drummond de Andrade escreveu os seguintes versos:

“Poesia de Renata:
sob a música exata
há um tremor humano.
O verbo conta mais
do que os jogos verbais:
o mundo refletido.
O tempo, o ser, a morte
o invisivel suporte
do amor por sobre o caos.
Poesia de Renata:
um reflexo de prata
no deserto noturno”.


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Renata Pallottini apareceu aqui em dois outros boletins:

poesia.​net número 330

poesia.​net número 21


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Irônicos e melancólicos


• Renata Pallottini


              



Hulya Ozdenir - You feeel my stare - 2019
Hülya Özdenir, pintora turca, Você sente meu olhar (2019)


NO RIO DAS VELHAS

Garimpando,
sem jeito,
no Rio das Velhas
encontro a pedra
verde
decerto preciosa.

Ao movê-la entre os dedos
me feriu de dar sangue.

Joguei de volta a pedra
no Rio das Velhas.

Quem sabe a encontra
com mais sorte
outra velha?




Hulya Ozdenir - In the silence we yearn-2017
Hülya Özdenir, No silêncio ansiamos (2017)


O QUE EU PROPONHO

O que eu proponho
É um inferno limpo
Sem nenhuma espécie de sonho.

Também um infinito
Onde tudo se acabe
Menos o grito.

O que eu proponho é uma eternidade
Onde seja proibida
A saudade.

Sem ilusões de nenhuma casta.
O que eu proponho é estar contigo
Até que eu diga
(e nunca vou dizê-lo)
basta.




Hulya Ozdenir - Send her my love-2018
Hülya Özdenir, Envie a ela meu amor [Frida Kahlo] (2018)


SOGNO 123

Nesse quarto que não há
Canto um tango que não sei
Pra você, que já não está

É tudo um país distante
Outro mundo, outras montanhas
Outra bebida, outro instante

A cama, desarrumada
Decora esse melodrama.
Por força, é de madrugada.
Pena que a vida se acanhe
E tudo desande em nada...


NO OFTALMOLOGISTA

Doutor:
Esqueci de lhe fazer uma pergunta:
— chorar, pode?




Hulya Ozdenir - Madonna-2018
Hülya Özdenir, Madonna (2018)


A RUA

A rua tem um defeito:
Eu não moro mais nela.

Eu também tenho um defeito:
Não sou mais
Aquela.




Hulya Ozdenir - Well-kept secret-2017
Hülya Özdenir, Segredo bem guardado (2017)


VIESSE LOGO A NOITE

Viesse logo a noite
Uma noite completa
Universal
Que matasse todas as guerras
De um sono profundo e total

Viesse logo a noite exemplar
Em que se amariam todas as gentes
Como se as gentes tivessem alma para amar

Viesse a noite dos silêncios
Todos cessassem as palavras
Provadas já, inutilmente,
E fosse a noite de somenos
Dos grilos, das corujas e dos ventos

Em que, de pé, só eu sentisse
A voz pacífica e feliz
Das feras soltas na planície


DE UMA FORMIGA

Formiga que salvei das águas da piscina
Quando se viu andando, eu senti que dizia:
“obrigada, senhora deus, muito obrigada”.





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Renata Pallottini
•   in Poesia Não Vende
     Hucitec, São Paulo, 2016
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* Francisco Carvalho, “Pomar Alheio”, in O Silêncio é Uma Figura Geométrica (2002)
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* Imagens: obras de Hülya Özdenir (1972-), aquarelista turca