Número 473 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 15 de setembro de 2021

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«O que me põe elétrico são as turbinas do sonho.» (Ronaldo Costa Fernandes) *

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Damário Dacruz
Damário Dacruz


Amigas e amigos,

O poeta em destaque nesta edição é o baiano Damário Dacruz (1953-2010). Nascido em Salvador, Damário foi poeta e fotógrafo, graduado em jornalismo pela UFBA e especialista em comunicação em marketing.

Apaixonado pelo Recôncavo Baiano (a região que circunda a baía de Todos os Santos e inclui a capital baiana), o poeta montou no ano 2000, na cidade histórica de Cachoeira, às margens do rio Paraguaçu, um local de cultura chamado Pouso da Palavra, espaço dedicado à poesia e às artes visuais. A partir de certo momento, Damário Matos da Cruz, seu nome completo, passou a assinar-se artisticamente como Damário Dacruz.

Na poesia, o autor publicou os seguintes livros: Vela Branca (1973); Todo Risco – O Ofício da Paixão (1993); Segredos da Pipa (2003); e Re(sumo) (2008), reunião de poemas antes publicados sob a forma de cartazes. Em 2010 saiu o livro póstumo Bem Que Te Avisei. O título mais conhecido de Damário é Todo Risco, que em 2012 mereceu uma segunda edição, também póstuma, publicada pela Fundação Pedro Calmon, ligada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

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Para este boletim, selecionei um punhado de poemas exatamente do livro Todo Risco – O Ofício da Paixão. O primeiro texto da série é “Todo Risco”, que dá título ao livro. Nele o poeta reflete sobre os riscos e medos de nossas decisões. “Ninguém decide / sobre os passos / que evitamos”.

No poema seguinte, “Breviário”, o poeta brinca com o significado dessa palavra. “Breviário” é, ao mesmo tempo, sinônimo de resumo, sinopse e também indica um livro com princípios e ideias, algo que serve de guia ao seu leitor. Significa ainda uma reunião de orações e salmos, no contexto religioso. No texto, o poeta avisa: “Em breve dia / escreverás / a tua carta definitiva”. Em suma, os teus dias se acabarão.

Em “Ô Dicasa”, um metapoema, o autor usa a expressão corriqueira de quem se anuncia (ou antigamente se anunciava) à entrada de uma residência. Segundo ele, a poesia entra nas casas pelas frestas, “como os pequenos ventos”. Mas, sem ilusão, conclui: “O difícil / é achar gente / dentro de casa”. Achar gente? Sim, pessoas dispostas a se envolver com a visitante, Dona Poesia.

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No poema “Caixa-Preta” a reflexão se volta para a natureza do ser humano e suas oscilações. Primeiro, constata: “O que foi dito, / ao entardecer, / não se confirma / na madrugada”. Depois, conclui: “Sou um homem. / Portanto, / uma surpresa”.

O texto seguinte, “Aviso Prévio”, parece tratar da solidão de poetas e artistas, iindivíduos preocupados com questões que aparentemente não incomodam outras pessoas. “Os meus amigos / se calaram; / e, solitário, / descubro o silêncio / mais profundo”.

Em “Calmaria” destacam-se as indagações existenciais. Pergunta o poema: “A que porto / busca este barco / de madeira podre?”. O texto também conclui, sombriamente, que “os portos estão fechados / às naus da liberdade”. Em certo sentido, isso me lembra Drummond: “Como vencer o oceano / se é livre a navegação / mas proibido fazer barcos?”.

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O último poema da seleção ao lado é “Resolução”. Nele, Damário da Cruz retorna às considerações sobre os sofrimentos e ações humanas. Para além da dor e da coragem, resta a união. “O que nos une / é alguma coisa / acima do sim, / é alguma coisa / acima do não”. E essa coisa, conforme o poeta, é a dor, travestida de amizade, solidariedade, união — poesia. O roçar dos dedos na mão do amigo.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Ofício da paixão


• Damário Dacruz


              



Cornelia Hernes - Ocean Song-2011
Cornelia Hernes, pintora norueguesa, Canção do oceano (2011)


TODO RISCO

A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.

Voo perfeito
no espaço que criamos.

Ninguém decide
sobre os passos
que evitamos.

Certeza
de que somos pássaros
e que voamos.

Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.



BREVIÁRIO

Em breve dia
escreverás
a tua carta definitiva.

Por enquanto
inventas
pequenos bilhetes
de sobrevivência,
envias
minúsculos recados
na boca da vida.

Por enquanto não és,
nem destinatário
nem remetente.



Cornelia Hernes - Pantomim-2015
Cornelia Hernes, Pantomima (2015)


Ô DICASA

A poesia
não pede passagem.

Entra
pelo canto da porta,
como os pequenos ventos,
ocupando os espaços da casa.

O difícil
é achar gente
dentro de casa.



CAIXA-PRETA

Sou um homem.
Portanto,
mais que palavra.

Não pronuncio
o sentimento
apenas como palavra.
O que foi dito,
ao entardecer,
não se confirma
na madrugada.
O que foi visto,
no sonho,
não se confronta
com a realidade.

Sou um homem.
Portanto,
uma surpresa.



Cornelia Hernes - OPearl-2007
Cornelia Hernes, Pearl (2007)


AVISO PRÉVIO

Os meus amigos
não apareceram;
e, solitário,
procuro o buraco
na lona do circo.

Os meus amigos
se calaram;
e, solitário,
descubro o silêncio
mais profundo.

Os meus amigos
saltaram o muro
que não alcanço
e partiram
sem aviso prévio.



CALMARIA

A que porto
busca este barco
de madeira podre?

Haverá cais livre
nos mares humanos
que hospede silenciosamente
um navegante suicida
num barco podre?

Os portos estão fechados
às naus da liberdade.
Os corações dos homens
já não acalmam
as correntes violentas
da razão dominadora.

O barco
da liberdade
apodrece nas mãos de todos.



Cornelia Hernes - Wall.flower-2013
Cornelia Hernes, Tímida (2013)


RESOLUÇÃO

Essa dor
não me resolve,
esse poema
não te resolve.
O que nos une
é alguma coisa
acima do sim,
é alguma coisa
acima do não
(se por acaso
a palavra amigo
é prisioneira
no coração do homem).

Essa dor
não me resolve,
esse poema
não te resolve.
O que nos une
é a cumplicidade
em caminhar sobre pedras,
é o compromisso
em cavalgar sobre peitos
(se por acaso
a palavra amigo
é prisioneira
no coração do homem).

Somos esta coragem
em insistência humana,
somos esta covardia
sem existência humana.
O que nos une
é essa dor mesmo,
é essa mesma poesia
em roçar os dedos
na mão do outro.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



Damário Dacruz
•   in Todo Risco – O Ofício da Paixão
     Fundação Pedro Calmon, Salvador, 2012
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* Ronaldo Costa Fernandes, “Minha Foz Não É do Iguaçu”
  in Memória dos Porcos (2012)
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* Imagens: obras de Cornelia Hernes (1979-), pintora norueguesa