Número 474 - Ano 19

Salvador, quarta-feira, 29 de setembro de 2021

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«Eu, sempre que parti, fiquei nas gares / olhando triste para mim...» (Mario Quintana) *

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4poetas
Guilherme de Almeida, Uaçaí Lopes, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Fernando Mendes Vianna, Carlos Drummond de Andrade



Amigas e amigos,

Na edição 464, em abril deste ano, o poesia.​net reuniu oito autores com poemas que, de alguma forma, põem o sol em primeiro plano. Ao receber o boletim, o poeta e teatrólogo brasileiro-francês Pedro Vianna me escreveu sugerindo um boletim centrado na lua.

Esta edição atende à sugestão de Vianna. Pesquisei no acervo do boletim e localizei seis poetas e seis poemas voltados para a lua. Naturalmente, como esta página não pode ser caracterizada como romântica ou marcadamente metafísica, a faceta lunar que menos aparece nos poemas escolhidos é a “lua dos namorados” ou o astro dos mistérios e assombrações.

Na seleção ao lado juntam-se seis poetas. Primeiro, o paulista Guilherme de Almeida ((1890-1969) e o baiano Uaçaí Lopes (1957-). Em seguida, vem o paulista Cassiano Ricardo (1895-1974) e o carioca Fernando Mendes Vianna (1933-2006). Por fim, dois pesos-pesados da poesia: o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1967) e o mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

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Guilherme de Almeida
poesia.​net n. 17

Uaçaí Lopes
poesia.​net n. 383

Comecemos com dois haikais de lua molhada. Primeiro, Guilherme de Almeida, com “Noturno”; e depois Uaçaí Lopes(1957-), com “[Após a invernada]”. Os dois poetas escrevem sobre a mesma lua refletida nas poças do chão. Almeida descreve uma imagem urbana, enquanto Lopes mira os múltiplos reflexos do satélite no leito de estrada, após a chuva, em ambiente aparentemente rural.

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Cassiano Ricardo
poesia.​net n. 295

Vem a seguir a “Lua Cheia”, de Cassiano Ricardo. Aqui, por meio das metáforas do poeta de São José dos Campos-SP, o disco lunar se apresenta como um botijão de leite que vai pingando luz branca pelo caminho. Esta lua corresponde à formulação mais antiga entre todas as que aparecem ao lado. Cassiano publicou este poema no livro Martim Cererê, de 1928, ainda sob os primeiros influxos do modernismo de 1922.

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Fernando Mendes Vianna
poesia.​net n. 333

O poeta Fernando Mendes Vianna nos traz a primeira lua mais agitada. Seu poema “Litania Feroz” mostra um satélite ligado a conhecidos fenômenos físicos como a gravidade e as marés. Mas o texto também conecta a lua ao “uivo longo” que provoca em seres humanos supostos procedimentos aluados. “Tempestuosa lua, lua feroz, / uivo no espaço, dentro de nós”. O uivo também remete a lobos, lobisomens e outros seres que, ao longo dos séculos, as histórias populares costumam associar à lua.

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Manuel Bandeira
poesia.​net n. 335

Manuel Bandeira, no poema “Satélite”, de seu livro Estrela da Tarde (1950), traz à cena outra lua: o astro que, em nosso sistema solar, gira como um satélite da Terra. Observe-se, aliás, que Bandeira escreve Lua, com inicial maiúscula, para sinalizar essa condição astral, assim como também se grafam os nomes de Vênus, Marte, Plutão. Uma “Lua baça/ (...) / Muito cosmograficamente / Satélite”.

Para que não haja dúvida, na segunda estrofe, Bandeira desveste o astro de qualquer atribuição metafísica: não é a lua dos namorados nem dos loucos, nem inspiração para pensamentos misteriosos e românticos. É apenas um satélite.

Um detalhe: este poema de Bandeira é o único dos seis transcritos ao lado que não havia sido publicado antes neste boletim.

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Carlos Drummond de Andrade
drummond: 100 anos n. 5

Agora, para fechar com chave de ouro — ou de prata, como a luz da lua? —, vem o poema “O homem; as viagens”, de Carlos Drummond de Andrade. Aqui, o ponto fulcral é o ser humano. A lua entra apenas como um sonho de conquista espacial. Já na primeira estrofe, o homem, “bicho da Terra tão pequeno” (alô, Camões!), resolve expandir-se para a Lua (aqui também com letra maiúscula: um lugar, o satélite).

Atenção para os oito versos que repetem a palavra “Lua”. Uma repetição que fatalmente conduz a “O homem chateia-se na Lua” (segunda estrofe). Então, o proceso se repete: “Vamos para Marte”. E o que acontece lá? “Coloniza / civiliza / humaniza Marte com engenho e arte” (alô, Camões! outra vez). E assim as coisas vão. Depois de Marte, Vênus etc. e até o Sol. Então, não há mais aonde ir. Para Drummond, resta ao ser humano fazer uma viagem “de si a si mesmo”, a fim de “civilizar / humanizar / o homem”, descobrindo, em suas próprias entranhas, a alegria de “con-viver”.

É interessante frisar que este poema foi escrito num momento em que estava em alta a chamada corrida espacial, na qual as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, disputavam, nos campos científico e propagandístico, para ver qual realizava os maiores feitos na conquista do espaço. “O homem; as viagens” é filho legítimo de Drummond, poeta e cronista. Sua primeira aparição se deu no jornal Correio da Manhã, no qual Drummond cronicou de 1954 até 1969.

Outros aspectos se destacam neste poema. Um deles é a deliciosa mescla de linguagem erudita, incluindo citações de Camões, com a linguagem popular e gírias do final dos anos 60: “chatear-se”, “fundir a cuca”, “estar na fossa” e o adjetivo “quadrado”, com o sentido de antiquado, obsoleto. Outro aspecto é a livre criação de palavras, como “insiderável” (que não pode ser queimado ou fulminado), “dangerosíssima” (palavra derivada do inglês danger = perigo) e “con-viver”.

Deixei para o fim o detalhe mais poderoso e intrigante: “O homem; as viagens” foi publicado no jornal em 20 de julho de 1969 — exatamente o dia em que a missão Apolo 11 da NASA permitiu que o homem pisasse pela primeira vez na superfície da Lua. É o poeta-cronista Drummond em todo o seu esplendor.

Este poema antológico não havia aparecido até agora em nenhum número deste boletim. Foi publicado na edição n. 4 da série drummmond: 100 anos (setembro a dezembro de 2002), que deu origem ao poesia.​net.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Poemas ao redor da Lua


• Guilherme de Almeida  • Uaçaí Lopes
• Cassiano Ricardo  • Fernando Mendes Vianna
• Manuel Bandeira
• Carlos Drummond de Andrade


              

Van Gogh - agostina segatoria-1887
Vincent van Gogh, holandês, Agostina Segatori no Café du Tambourin (1887)




• Guilherme de Almeida

NOTURNO

Na cidade, a lua:
a joia branca que boia
na lama da rua.


• Uaçaí Lopes

[APÓS A INVERNADA]

Após a invernada,
a lua banha-se nua
nas poças da estrada.



Van Gogh - bedroom.at.arles-first.version-1888
Vincent van Gogh, Quarto em Arles - primeira versão (1888)


• Cassiano Ricardo

LUA CHEIA

Boião de leite
que a Noite leva
com mãos de treva
pra não sei quem beber.

E que, embora levado
muito devagarzinho,
vai derramando pingos brancos
pelo caminho...

    Do livro Martim Cererê (1928)





Van Gogh - la.mousme-1888
Vincent van Gogh, La mousmé (1888)


• Fernando Mendes Vianna

LITANIA FEROZ

Tempestuosa lua, lua feroz,
uivo no espaço, dentro de nós.
Galhos ao vento, estamos sós,
e nos prostramos, lua feroz.

E nos erguemos, dentro de nós,
uivo longo, longo e sem voz.

Tempestuosa lua, lua feroz,
olho no espaço, longe de nós.
Como governas, longe de nós,
nossas marés e nossos cipós?

Ah! tu governas, dentro de nós,
quando gritamos, mudos e sós.



Van Gogh - still-life.vase.with.fifteen.sunflowers-1888
Vincent van Gogh, Vaso com quinze girassóis (1888)


• Manuel Bandeira

SATÉLITE

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados,
Mas tão-somente
Satélite.

Ah! Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas;
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
— Satélite.

    Do livro Estrela da Tarde (1960)





Van Gogh - agostina segatoria-1887
Vincent van Gogh, Autorretrato (1889)


• Carlos Drummond de Andrade

O HOMEM; AS VIAGENS

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2021



• Guilherme de Almeida
      “Noturno”
      in Poesia Vária
      Martins, São Paulo, 1947
• Uaçaí Lopes
      “[Após a invernada]”
      in Voo do Assanhaço
      Edições Açaí, Salvador, 2003
• Cassiano Ricardo
      “Lua Cheia”
      in Poesias Completas
      José Olympio, Rio de Janeiro, 1957
• Fernando Mendes Vianna
      “Litania Feroz”
      in Marinheiro no Tempo (1956-1986) — Antologia
      Thesaurus, Brasília, 1986
• Manuel Bandeira
      “Satélite”
      in Estrela da Vida Inteira
      José Olympio, Rio de Janeiro, 1976
• Carlos Drummond de Andrade
      “O Homem; As Viagens”
      in As Impurezas do Branco
      José Olympio, Rio de Janeiro, 1973
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* Mario Quintana, "O Viajante", in Poesia Completa (2006)
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* Imagens: obras de Vincent van Gogh (1853-1890), pintor holandês.