Número 481 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

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«O que esperais de um Deus? / Ele espera dos homens que O mantenham vivo.» (Hilda Hilst) *

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Gustavo Felicíssimo
Gustavo Felicíssimo



Amigas e amigos,

Após o tradicional recesso de verão, o poesia.net retorna. Esta edição, n. 481, é a primeira de 2022, o ano 20 deste boletim. Infelizmente, não são agradáveis as notícias, nem o que vemos diariamente país.

Ainda estamos em meio à pandemia de Covid, que já registrou um total espantoso de quase 650 mil mortos. Também é assustador o número de pessoas famintas e morando nas ruas de todas as grandes cidades do país. Como não há mal que sempre dure, temos, no segundo semestre deste ano, a chance de, nas urnas, tentar mudar este quadro.

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A primeira edição deste ano traz um autor que nunca esteve no boletim. Trata-se do escritor, agitador cultural e editor Gustavo Felicíssimo, que comparece com poemas de seu livro Oratório das águas.

Nascido em Marília-SP em 1971 e radicado na Bahia desde 1993, Felicíssimo fundou e dirige a Mondrongo, editora sediada em Itabuna-BA, que desde 2011 vem publicando numerosa coleção de títulos nas áres de poesia, conto, crônica, romance e ensaio. O autor é também criador e curador da FELITA - Feira Literária de Itabuna. Entre os livros de sua autoria estão Outros Silêncios (2011); Procura & Outros Poemas (2012); Desordem (2015); e Carta a Rubem Braga & Outras Crônicas (2017).

Lançado originalmente em 2019, o título Oratório das Águas ganhou, dois anos depois, uma sofisticada segunda edição. Com design bem elaborado, é um volume em tamanho grande (21x25 cm), com capa brilhante em relevo e ilustrações de Gabriel Ferreira.

Apreciador incontestável da poesia clássica e da mitologia grega, Felicíssimo desenvolve nesse livro um poema longo e ambicioso, dedicado à celebração da água e à reflexão sobre o papel desse elemento natural nas vidas humanas.

O oratório contém cinco partes: “Exórdio”; “I-Nascentes”; “II-Rios”; “III-Mares”; e “Epílogo”. Cada uma dessas divisões compõe-se de cantos breves, numerados, cuja extensão nunca vai além de 20 versos. Para este boletim, extraí quatro cantos de “Rios” e dois de “Mares”.

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Para começar, vamos ler o canto “2”, de “Rios”. Aqui, o sujeito lírico se deita à beira-rio e se põe a apreciar o correr das águas e o movimentos das aves: “Esses rios sinuosos são a vida / Neles me deito como se na relva / e fico de olhos bem abertos”.

No canto seguinte, a parte “4”, o texto compara o rio a “uma estrada / tão sinuosa quanto a existência”. Neste trecho, o autor traz para o poema o recurso das notas de rodapé, procedimento usado várias vezes no livro. Aqui, as duas notas fazem referência a um livro do poeta baiano Aleilton Fonseca.

A parte “6” de “Rios” começa assim: “Conheço rios muito antigos / tão antigos quanto o mundo”. Curiosamente, neste trecho, Felicíssimo não incluiu nenhuma nota de rodapé, embora cite o verso “I've known rivers ancient as the world” (“Conheço rios tão antigos quanto o mundo”), do poeta negro norte-americano Langston Hughes (1902-1967).

O último trecho da divisão “Rios” citado aqui é o n. “12”. Nele o poeta , mais uma vez, descansa junto ao rio e alegra a vista com a paisagem, que é para ele como “uma ciranda aos nossos olhos”.

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Vêm agora os dois cantos extraídos da parte “III - Mares”. O número “2” celebra as viagens oceânicas, as aventuras dos argonautas e, ao mesmo tempo, a emoção de encontrar novas e desconhecidas praias: “Trago uma lágrima após outra lágrima / que é como uma onda após outra onda”

Vem, por fim, o canto “10” de “Mares”. Mais emoção (“Choro como Ulisses ao avistar a sua Ítaca / quando vejo ao longe as luzes da minha terra”) e um grande enigma a desvendar: “Apaga-se o dia como um dia nos apagaremos — / a poesia é o ato de entender esse mistério”. Baixa a noite, extingue-se a luz do sol, assim como também se apaga a centelha da vida.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Oratório das Águas


• Gustavo Felicíssimo


              

Casey Baugh - Nocturnus 0146
Édouard Manet, pintor francês, Primavera (1881)


• II — RIOS

2

Esses rios sinuosos são a vida
Neles me deito como se na relva
e fico de olhos bem abertos
Neles a existência é uma coisa
muito mais simples e delicada
Cada um continua no seu lugar
durante o anoitecer desse verão
Apenas eu e um amigo
fazemos companhia às águas
e à vegetação nas suas margens
Passa por nós uma diligência de garças
Elas passam e não deixam marcas
Os rios são como essas aves
e as águas que sempre foram suas
marcham para o líquido encontro


4

Ouço que um rio é uma estrada
tão sinuosa quanto a existência
Talvez seja a melhor imagem
posto que todo rio é um corpo
que passa e que não passa nunca
Mas quem os olha com vagar
sabe que eles são a vida mesmo
Quem os olha por suas entranhas
sabe que eles nunca vagam a esmo
e que entendem mais de poesia
que toda a humanidade junta
Quem olha um rio nos olhos1
sabe que ele não cessa de renascer2
_______

1 Um Rio nos Olhos é o título de um livro de Aleilton Fonseca.
2 Esse verso é do poema que dá título ao livro citado anteriormente.



Casey Baugh - Nocturnus 0146
Édouard Manet, Arcenteuil (1874)


6

Conheço rios muito antigos
tão antigos quanto o mundo
Rios que se fazem no caminho
recolhendo cada gota de orvalho
Eu permaneço com todos eles
e eles todos são comigo
Cantam-me canções de ninar
desde o alvorecer dos dias
Beijam-me a face quando durmo
e velam meu sono de menino
Sonho que sou o pescador
que vence as suas distâncias
Mas tudo o que posso ser e sei
é que deles sou apenas Menestrel


12

Renasci sobre essas águas rútilas
em harmonia com a suavidade
onde a mansidão fez sua morada
onde o infinito se oferece à vista
e ao sossego das pálpebras cansadas
ao repouso dos pés calejados
— para os quais é feito um porto —
em compasso com o vento e o sol
com a chuva e as nuvens cinzentas
que devolvem a água para a água
feito uma ciranda aos nossos olhos


Casey Baugh - Nocturnus 0146
Édouard Manet, O Balcão (1868)


• III — MARES

2

Outrora aqui chegaram as naus
que venceram os oceanos
Agora surgem esses versos
como se fossem os Argonautas
trazidos por um mar de espanto
Eles nascem tão logo piso a praia
e se espraiam nas minhas entranhas
não como o fogo do mistério
mas feito o afogado pedindo água
E, no entanto, não trago náufragos
ou fantasmas para a festa do mar
pois o mar nos meus olhos se afoga
Trago uma lágrama após outra lágrima
que é como uma onda após outra onda


10

Choro como Ulisses ao avistar a sua Ítaca
quando vejo ao longe as luzes da minha terra
Choro, pois o amplo silêncio do mar é o que ouço
agora que a luz da noite vai encobrindo a do dia
Não faz mal que anoiteça tão lentamente
Me recolho quando se recolhem os pássaros
ainda que meus olhos não cansem de madrugar
junto ao mar, que por força maior, vai perdendo
o esmalte azul que a tarde pinta em aquarela
Amanhã, novamente a noite há de apagar o dia
novamente o mar há de perder o seu esmalte
outras pessoas hão de deixar suas pegadas
nesta mesma praia (que outra será) em que pisei
Apaga-se o dia como um dia nos apagaremos —
a poesia é o ato de entender esse mistério




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Gustavo Felicíssimo
      in Oratório das Águas
      Ilustrações de Gabriel Ferreira
      Mondrongo, Itabuna-BA, 2021
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* Hilda Hilst, "Passeio", in Exercícios (2002)
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* Imagens: obras de Édouard Manet (1832-1883), pintor francês.