Número 486 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 4 de maio de 2022

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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Marcílio Godoi
Marcílio Godoi



Amigas e amigos,

Antes de tudo, devo dizer — com a mais limpa e constrangida sinceridade — que esta edição constitui, pelo menos para mim, uma espécie de errata. Eu devia ter publicado este boletim há pelo menos três ou quatro anos. Aqui vai o histórico. Em 2016, o poeta, cronista e romancista mineiro Marcílio Godoi enviou-me gentilmente um exemplar de seu livro de poemas Estados Úmidos da Matéria (Patuá, 2016), sua obra de estreia na poesia.

Como faço com as coletâneas que me chegam às mãos, pus uma etiqueta autocolante na orelha do livro e nela anotei, durante a leitura, as páginas dos poemas que me pareciam interessantes para um boletim. Fiz isso e depois cheguei a usar um desses poemas na edição n. 404, de agosto/2018.

Nessa edição coletiva, Marcílio Godoi aparece ao lado do paulista Heitor Ferraz Mello e do moçambicano Mia Couto. O problema é que, depois, esqueci o livro de Marcílio Godoi e os outros poemas marcados para uma edição do boletim. Agora, encontrei na estante os Estados Úmidos da Matéria e vi lá a etiqueta com a indicação dos poemas. Falha extraordinária. Mas, enfim, antes tarde do que mais tarde. Godoi e seu livro estão em destaque nesta edição.

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Começo com o poema “A Moça que Veio”, o mesmo incluído no boletim coletivo de 2018. É um texto de altíssima singeleza. Vem a seguir “Alice”, outro poema que sugere certa ingenuidade. Contudo, a história dessa Alice diante do espelho é menos casual. Há aí uma sofisticação na brincadeira com a dupla personalidade entre Alice e Lili.

“Prova de Biologia” é o próximo poema. Aqui, o teste de múltipla escolha propõe ao leitor encontrar uma resposta certa para o que é o amor. Opção três: “( ) o amor é uma ciência inexata e,/ ao mesmo tempo,/ uma inconsciência exata”. Responda o leitor, se souber.

“Ana Lis” é um poema musical, cheio de ritmo e rimas. Nele um cantor se dirige a sua amada, a moça do título, e sugere as peripécias de um amor do interior, com direito ao badalar do relógio da matriz. Não entendo de música, mas penso que essa Ana Lis está pedindo para ser musicada, se é que já não o foi, nestes seis anos em que o livro está circulando. “Ana Lis, me diz/ ainda existe no mundo/ o direito a pedir bis/ das coisas que não valeram/ quando eu era inda aprendiz?”

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O poema seguinte, “120 Segundos”, oferece uma reflexão sobre quanto se pode viver sem ar ou sem água. A rigor, é um poema sobre a morte, tema que é também o pano de fundo para “Último Pedido”. O neto rememora sua derradeira interação com o avô.

Vem, por fim, o poema “Prenúncio”. Em versos breves, o poeta conclui que a arte, inclusive a poesia, é uma forma de anunciar a morte.

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Marcílio Godoi (Araguari-MG) é jornalista, arquiteto e mestre em crítica literária e literatura brasileira. Ganhou prêmios com textos em prosa, inclusive infantojuvenil, e publicou em 2016 Estados Úmidos da Matéria (Patuá), seu primeiro livro de poesia. O autor também escreve crônicas e estreou no romance com o título Etelvina (Patuá, 2021).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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ADEUS À POETA

Com profundo pesar, registro o falecimento, em 15 de abril, da poeta Quinita Ribeiro Sampaio (1926-2022), em Campinas-SP, cidade onde sempre viveu. Professora de língua portuguesa e literatura, Quinita era uma amante das palavras. Poemas de seu livro Apendizagem pelo Avesso (2012) saíram aqui na edição n. 344.



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ERRATA

Na edição anterior, escrevi que a poeta Astrid Cabral estreou na poesia com o livro Alameda (1963). Trata-se, na verdade, de um livro de contos. A correção já foi feita na cópia do boletim hospedada no site. Agradeço ao poeta piauiense Diego Mendes Sousa a indicação do erro.



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Alice diante do espelho


• Marcílio Godoi


              

David Hockney- edith.devaney-11-12-13feb2016
David Hockney, pintor britânico, Edith Devaney 11-12-13 Fevereiro 2016


A MOÇA QUE VEIO

    A Márcia Bassetto Pires

ela estava contente
com o porta-retratos
que ganhara de aniversário.

tanto que o colocara
na sala de visitas,
sobre a mesinha de centro.

por que a senhora não põe
uma foto da senhora mesma ali,
perguntei sem receio.

ela disse, ah, meu filho,
deixa assim, tá tão bonita
essa moça que veio.


ALICE

dentro do espelho
tem uma menina
que se parece comigo.

ela sempre me aparece
no vidro juntas
esprememos espinhas,
choramos.

às vezes me assustam
seus segredos
às vezes rio,
rimos.

eu a chamo lili
e morro de curiosidade
de saber o nome
que ela me deu.


David Hockney- gregory.evans-january-20-1997
David Hockney, Gregory Evans 20 de Janeiro 1997


PROVA DE BIOLOGIA

( ) o amor é a enzima
    da melhor das hipófises.

( ) o amor é o hormônio
    que a pituitária nos secreta.

( ) o amor é uma ciência inexata e,
    ao mesmo tempo,
    uma inconsciência exata.

( ) o amor é o tecido que se descola
    e nos desloca,
    enquanto trocamos de pele.

( ) o amor é o sistema central nervoso.


ANA LIS

ana lis, me diz.
o que foi feito da gente
quando a gente era feliz?
e não pensava no tempo
do relógio da matriz?

ana lis, me diz.
aonde foram dar nossos sonhos
de desenho feito a giz?
ficou alguma ferida
resistindo à cicatriz?

ana lis, me diz,
ainda existe no mundo
o direito a pedir bis
das coisas que não valeram
quando eu era inda aprendiz?

ana lis, me diz,
nunca tive sossego
por ter feito o que eu não fiz
por onde levo a esperança,
por acaso ou por um triz?

ana lis, responde, please.


David Hockney- Mum-1990
David Hockney, Mamãe (1990)


120 SEGUNDOS

sem ar, é coisa de um, dois minutos,
sem água, aí já leva uns poucos dias.
sem comida, demandará um par de semanas,
no máximo.

isso sem contar o trágico acidente,
em sua fração de segundos.

como se vê,
a morte é ágil
para se impor.

a vida é que toma certo tempo
até que possa ser
servida.


ÚLTIMO PEDIDO

    A meu sobrinho-irmão, Marciano S. de Godoi

cruza-me as pernas,
disse meu avô,
na última vez em que o visitei.

tomei uma de suas coxas
e com cuidado a ergui,
repousando-a sobre o joelho oposto.

esvaído em forças,
abriu bem os olhos e viu-se
recomposto no postar-se de outrora.

a despeito de sua fragilidade,
sorriu, recostando-se no espaldar.
tomou fôlego, e agradeceu-me o paciente gesto.

então nos despedimos,
com a cordura de sempre,
entrecruzados na eternidade.


PRENÚNCIO

prenúncio
e cada poema tem
seu jeito particular
de dizer a mesma coisa,
o que toda obra de arte,
em síntese, prenuncia:

que vamos morrer um dia.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Marcílio Godoi
      • Todos os poemas:
      in Estados Úmidos da Matéria
      Patuá, São Paulo, 2016
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* Myriam Fraga, "Calendário: Março", in Femina (1996)
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* Imagens: quadros do pintor britânico contemporâneo David Hockney (1937-)