Número 490 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 6 de julho de 2022

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«Oh abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Três Poetas
Roberval Pereyr (alto), Francisco Carvalho, Ledusha Spinardi



Amigas e amigos,

Quem teve a oportunidade de receber alguma orientação sobre a produção de textos certamente foi aconselhado a fugir das repetições. Palavras, frases ou estruturas repetidas — dirá o professor, com razão — são um sinal de pobreza criativa.

Não há dúvida de que esta observação deve ser levada a sério. Mas também é possível que o mestre se esqueça de ressaltar um detalhe: bem dosada, a repetição pode transformar-se em poderoso recurso estilístico.

Nesta edição, o poesia.​net reúne alguns poemas que assentam suas bases exatamente na repetição. Seus autores são a paulista Ledusha Spinardi; o baiano Roberval Pereyr; e o cearense Francisco Carvalho.

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Ledusha Spinardi
poesia.​net n. 258 (2005)

O poema de Ledusha Spinardi foi para mim o ponto de partida para esta seleção de textos focados na repetição de frases ou palavras. “Há” — título curtíssimo que deve ser entendido como o início de todas as frases do texto — apresenta um ponto de vista feminino, ou feminista.

Assim, as pessoas descritas de forma reiterada como “Os que” são exclusivamente homens, e não pessoas em geral. A crítica ao machismo revela-se mordaz: há “Os que espalham o conflito”, “Os que têm presas no olhar”, “Vampiros por trás de lentes”, “Os que decifram. Os que devoram” e até os “Marxistas que espancam mulheres”.

O poema “Há” saiu originalmente no livro Exercícios de Levitação (7Letras, 2002). Poeta, jornalista e tradutora, Ledusha Spinardi — no cartório, Leda Beatriz Abreu Spinardi (Assis-SP, 1953) — publicou outros livros de poesia: Lua na Jaula (Todavia, 2018); Notícias da Ilha - 31 Anos de Poesia (7Letras, 2012); Finesse e Fissura (Brasiliense, 1984); Risco no Disco (autopublicação, 1981; Luna Parque, 2016); e 40 Graus (Francisco Alves, 1980).

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Roberval Pereyr
poesia.​net n. 35 (2003)

Em seu poema, igualmente crítico, o baiano Roberval Pereyr também menciona personagens cuja identificação começa pela expressão “Os que”, ou simplesmente “Os”. Mas aqui a condenação é geral, não se volta apenas a indivíduos de um gênero.

Contudo, o tom de desprezo é talvez mais forte. Volta-se, por exemplo contra “Os donos do império e da farsa”, “Os falsificadores da falácia”, “Os enviados para destruir”. O texto execra inclusive “Os sacaneados plácidos”, aqueles que, embora vítimas, aceitam calados as ignomínias que lhes são impostas.

A conclusão do poema não é nada agradável. Diante de tanta infâmia, o que pode vir? “A certeza de tudo / piorar”. [Isso, óbvio, só se mantém verdadeiro enquanto os outros — que são a maioria e não estão citados entre “Os que” — não resolverem se libertar dos abusos praticados pelos “enviados para destruir”. Agora mesmo, no Brasil, temos uma oportunidade concreta de dizer não aos “donos da farsa”.]

A severa “Legião” de Roberval Pereyr (Antonio Cardoso-BA, 1953) foi publicada no livro Amálgama - Nas Praias do Avesso e Poesia Anterior (2004). Outros livros do autor: Mirantes (7Letras, 2013), Saguão de Mitos (Editorial Cone Sul, 1998); O Súbito Cenário (1996). Pereyr é poeta, ensaísta e professor de literatura.

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Francisco Carvalho
poesia.​net n. 460 (2021) e poesia.​net n. 212 (2007)

Vêm agora dois poemas de Francisco Carvalho. No primeiro, chamado “Aridez”, o núcleo repetitivo é justamente a palavra “árido”, com algumas variações de gênero e número.

Diferente dos textos anteriores, a aridez de Francisco Carvalho constitui um exercício de criatividade que às vezes beira o surrealismo, como quando se refere ao “tropel dos escorpiões bailarinos” ou às “árvores de copas de mármore”.

No segundo poema assinado por Francisco Carvalho, “Balada Trágica”, o módulo que se repete é “A que [ou O que] se chamava”. O andamento é de parlenda, a sequência de rimas para crianças. Com muito bom humor, o texto brinca com nomes de mulheres e homens — e todos morrem num dia da semana.

Desse modo, o poema tem somente sete versos que, como uma metralhadora, executam todos os personagens, um a cada dia. Somente um deles, Deolindo, subverte a regra e, em vez de morrer, ressuscita no domingo.

O cearense Francisco Carvalho (1927-2013), autor fertilíssimo, escreveu dezenas de livros, todos de poesia. “Aridez” foi publicado no livro Romance da Nuvem Pássaro (1998) e “Balada Trágica” vem do volume Barca dos Sentidos (1989). Os dois poemas, no entanto, foram extraídos da antologia Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos (2004), publicada pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Poemas de repetição


• Ledusha Spinardi • Roberval Pereyr
• Francisco Carvalho


              

Vilhelm Bjerke-Petersen - Untitled
Vilhelm Bjerke-Petersen, pintor dinamarquês, Sem Título


• Ledusha Spinardi

Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo. Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram. Os que devoram. Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.

      In Exercícios de Levitação (2002)



Vilhelm Bjerke-Petersen - Untitled
Vilhelm Bjerke-Petersen, Sem Título


• Roberval Pereyr

LEGIÃO

Os viscerais.
Os aguados.
Os donos do império e da farsa.
Os de fácil declinação.
Os falsificadores da falácia.
Os clínicos, os cínicos, os simpaticíssimos.
Os atuais pretéritos atuais.
Os sacaneados plácidos.
Os bem-vendidos, os amalgamados, os da lama.
Os enviados para destruir.
Os que se deitam para maquinar.
Os que colhem flores por equívoco.
Os desvairados.
Os canibalistas do absurdo.

E a certeza de tudo
piorar.

      In Amálgama - Nas Praias do Avesso e Poesia Anterior (2004)



Vilhelm Bjerke-Petersen - Untitled-1930
Vilhelm Bjerke-Petersen, Sem Título (1930)


• Francisco Carvalho

ARIDEZ

Árido o pássaro
árida a cicatriz na pedra
árido o vento
árido o tropel dos escorpiões bailarinos
árida a simetria da luz
árido o céu
árido o silêncio de Deus
árido o madrigal
árido o cio da cobra
árido o lamento da porta aberta
árido o amor dos homens
árida a madrugada
árido o cântico dos galos nas tardes de estio
áridas as árvores de copas de mármore
áridos os seios das mulheres
árido o ventre
árida a palidez do rosto
árido o fel do sorriso raiado de sangue
áridos os olhos
árido o galope das nuvens degoladas
árido o sabor da treva
árida a agonia da terra demolida
árido o esquecimento
árida a voz que diz adeus aos mortos.

      In Romance da Nuvem Pássaro (1998)



BALADA TRÁGICA

A que se chamava Raimunda morreu na segunda
A que se chamava Vanessa morreu na terça
A que se chamava Marta morreu na quarta
A que se chamava Jacinta morreu na quinta
A que se chamava Violeta morreu na sexta
O que se chamava Bernardo morreu no sábado
O que se chamava Deolindo ressuscitou no domingo.

      In Barca dos Sentidos (1989)





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



Ledusha Spinardi
      • “Há”:
      In Exercícios de Levitação
      7Letras, Rio de Janeiro, 2002

Roberval Pereyr
      • “Legião”:
      In In Amálgama - Nas Praias do Avesso e Poesia Anterior
      SCT/FUNCEB, Salvador, 2004

Francisco Carvalho
      • “Aridez”; “Balada Trágica”:
      In Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
      Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
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* Carlos Drummond de Andrade, "Resíduo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: quadros do pintor dinamarquês Vilhelm Bjerke-Petersen (1909-1957)