Número 497 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 26 de outubro de 2022

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«Poesia é sempre assim: / Uma alquimia de fetos, / Um lento porejar / De venenos sob a pele.» (Myriam Fraga) *

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Poetas-20anos-01
Dalila Teles Veras; Ruy Espinheira Filho; Gilberto Nable // Ruy Proença; Mariana Ianelli; Marcílio Godoi // Cyro de Mattos; Tarso de Mello; Alexandre Guarnieri



Amigas e amigos,

Nesta edição, iniciamos as comemorações dos 20 anos de circulação do boletim poesia.​net, que serão completados em 12 de dezembro. Em 2017, quando o boletim fez 15 anos, organizei um site especial, e as comemorações ficaram centradas nos leitores, que foram convidados a opinar sobre a publicação.

Agora, ocorreu-me que uma boa forma de comemorar seria envolver as poetas e os poetas ativos e acessíveis que já figuraram no boletim. Então, pedi a cada um/a delas e deles um poema inédito de tema livre. Com esses poemas, organizamos cinco edições que, a partir desta, serão publicadas até a data do aniversário.

Para organizar estas edições, enviei e-mails, mais de um, a cerca de 70 poetas ativos, já publicados no boletim, e com quem consigo fazer contato. Alguns talvez não tenham recebido, ou não leem mais o e-mail. Em certos casos, recorri a terceiros na tentativa de alcançar a/o poeta, nem sempe com êxito.

Mas, no final, o resultado foi bem melhor do que eu esperava: 45 poetas responderam e enviaram os poemas inéditos mostrados neste e nos quatro próximos boletins. A ordem de entrada corresponde à chegada dos poemas. Nestas edições, não farei nenhuma apreciação sobre os textos. Afinal, é festa, e não parece de bom tom tecer comentários sobre a indumentária dos convidados.

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Desde já, agradeço aqui a todas as poetas e todos os poetas que prestigiaram este boletim antes e agora oferecem gentilmente um poema inédito de sua autoria. Viva a Poesia!

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Cada uma das cinco edições comemorativas inclui nove poemas, de nove poetas. O nome de cada autora ou autor é mostrado acima do poema, com a indicação da cidade onde vive. Além disso, mais abaixo, dou o link para o último boletim individual em que a/o poeta figurou. Lá, o leitor encontrará informações biobibliográficas, além de outros poemas do autor.


POETAS DESTA EDIÇÃO

Dalila Teles Veras
poesia.net n. 355

Ruy Espinheira Filho
poesia.net n. 494

Gilberto Nable
poesia.net n. 427

Ruy Proença
poesia.net n. 441

Mariana Ianelli
poesia.net n. 475

Marcílio Godoi
poesia.net n. 486

Cyro de Mattos
poesia.net n. 491

Tarso de Melo
poesia.net n. 390

Alexandre Guarnieri
poesia.net n. 360


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O TÍTULO

Nesta edição, assim como ocorrerá nas quatro próximas, o título do boletim foi extraído de um dos poemas. Nesta, a expressão “Um sopro no coração” veio do poema “Sequelas”, de Marcílio Godoi.


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ALGUNS NÚMEROS

Nestes 20 anos, o boletim já publicou mais de 350 diferentes poetas. Visite a página com o índice geral do poesia.​net e confira a lista de autores. Além de nomes brasileiros, você encontra poetas do mundo inteiro, de diferentes momentos da história literária.


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UM POUCO DE HISTÓRIA

A edição n. 1 do poesia.​net circulou no dia 12/12 de 2002. A publicação surgiu como uma continuação natural do boletim Drummond: 100 anos, distribuído por e-mail em 40 edições, de 4 de setembro a 4 de dezembro daquele ano, em comemoração do centenário do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Concluída a série drummondiana, alguns leitores, sugeriram que eu devia fazer novo boletim, focado em outro poeta, como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto. Não aceitei a sugestão. Primeiro, porque minha intimidade com esses poetas era bem menor do que com a obra de Drummond. Depois, em razão da própria obra: Drummond envolve, além da poesia, contos, crônicas, crítica, entrevistas.

Afinal, decidi produzir boletins avulsos. Em cada edição, um poeta. O primeiro foi João Cabral de Melo Neto. Com o passar do tempo, vieram os boletins coletivos, organizados com base em um tema, com a participação de vários poetas.

No início, o boletim só existia para os assinantes, que o recebiam por e-mail. Logo em seguida, em 2003 foi criado o site Alguma Poesia, no qual é possível encontrar toda a coleção de boletins — 497 até hoje —, assim como a série Drummond: 100 anos e outras informações sobre arte e cultura.

Em março de 2014, o boletim passou a ter uma página no Facebook. Além de divulgar as edições quinzenais, essa extensão do poesia.​net publica diariamente um “cartão poético”, cartaz ilustrado com um poema ou trecho de poema. O cartão poético também se desdobrou em variações: “cartões poético-musicais” (com letras de canções); e “cartões po-éticos” (com alguma reflexão filosófica). Atualmente, o número total de diferentes cartões poéticos já se aproxima de 1500.


Um abraço, e até a parte 2 de 5 destas edições especiais dos 20 anos do poesia.​net.

Carlos Machado


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Um sopro no coração


• Dalila Teles Veras  • Ruy Espinheira Filho
• Gilberto Nable  • Ruy Proença
• Mariana Ianelli  • Marcílio Godoi
• Cyro de Mattos  • Tarso de Melo
• Alexandre Guarnieri


                poesia.net - 20 anos [1]

              



Poetas - poesia.net 20 anos-01
Poetas desta edição: Dalila Teles Veras; Ruy Espinheira Filho; Gilberto Nable // Ruy Proença; Mariana Ianelli; Marcílio Godoi // Cyro de Mattos; Tarso de Melo; Alexandre Guarnieri



Dalila Teles Veras  • Dalila Teles Veras
Santo André, SP

XIII

decidida a cumprir a tarefa imposta com seriedade e empenho
posicionada à frente da tela luminosa dedos descarnados sobre
o teclado aguardo a primeira frase dada por algum insuspeito
escaninho da memória ou dicas da imaginação criativa

as mãos agora já dormentes e o cérebro em brasa soletram
nada hoje nada há vários dias nada há semanas nada
ato contínuo pulo para as páginas do pesado volume ao lado
e é wislawa szymborska que me socorre com sua cortante
ironia — Tá bom. Tá bom. Mas agora dorme.
É noite e amanhã te esperam coisas mais urgentes.




Ruy Espinheira Filho  • Ruy Espinheira Filho
Salvador, BA

SONETO DA TARDE OBSCURA

Regressa a tarde com seu jeito obscuro
de ser. Se sopra um vento, é vento impuro
que traz, num rio sofrido, suas histórias,
como eternos fantasmas de memórias.

Memórias... Que fazer? São mesmo suas,
mas como sóis extintos, mortas luas
que, no entanto, destilam, quase em calma,
despojos desde o abismo de sua alma.

Vozes e sombras do que foi vivido
e agora é só lamento do perdido,
de quando tudo era tão doce e leve

e hoje anoitece como um rio sofrido
em que se banha a frágil mão que escreve
os sonhos de quem vai partir em breve.




Juraci Dórea - Brasileiros
Juraci Dórea, pintor baiano, Brasileiros



Gilberto Nable  • Gilberto Nable
Belo Horizonte, MG

LEI ÁUREA

      (...) o negro agora era livre para escolher a ponte
      sob a qual preferia morrer.
— Discurso do senador
      negro Abdias do Nascimento (PDT-RJ) em 13/05/2013

Fecharam as senzalas
&
encheram as prisões.

Fecharam as senzalas
&
lotaram as favelas.

Aposentaram a chibata
&
agora lhes descem o pau.

Pararam com as bofetadas
&
hoje lhes chutam o saco.

Desistiram da meia tigela,
&
agora os matam de fome.

Esvaziaram as plantações,
&
agora eles moram sem teto.

Despovoaram as minas
&
agora não têm trabalho.

Pararam com os estupros
&
hoje as comem na zona.

Os trataram com desprezo
&
hoje sem a menor estima.

Negaram-lhes a liberdade
&
hoje não têm nenhuma.

Ficou seis por meia dúzia
&
tudo do mesmo tamanho.



Ruy Proença  • Ruy Proença
São Paulo, SP

CORPO FECHADO

que o roxo o amarelo o rosa o branco
dos ipês
antecipem a primavera
neste início de inverno

que uma explosão de
alegria
venha tingir nossos olhos
    — rara alegria tão procurada

que todos os vírus
se acalmem
e nos deixem
(nós que não somos blindados)
em paz

o vírus vírus
o vírus do autoritarismo
o vírus da mentira
o vírus da ganância
da ignorância

que os ipês se imponham
roxo amarelo rosa branco
como símbolo da resistência
resiliência
contra o vírus da destruição




Juraci Dórea - Brasileiros
Juraci Dórea, Brasileiros



Mariana Ianelli  • Mariana Ianelli
São Paulo, SP

MINHA AMIGA

Minha amiga
Faz primavera quando quer:
Tem sob a pele
Franjando o peito
Papoulas orientais
De Georgia O’Keeffe
Que ora se deixam entrever
Franqueadas pela roupa leve
Ora desaparecem completamente
Como fosse justo e natural
A esse vergel
Também o outono
Também o inverno
Minha amiga
Onde estiver
Será sempre ela
Com suas papoulas vermelhas
Sobre o coração
Assanhando-se para o mundo
Recolhendo-se
Ela e seu íntimo
Insondável
Arbítrio
De florir.



Marcílio Godoi  • Marcílio Godoi
São Paulo, SP

SEQUELAS

Meu avô tinha uma perna de arame
Que ganhou de uma granada
Na revolução de trinta e dois
E que coçava como a outra perna
Roçando a bengala no ar.

Minha vó tinha um olho de vidro
Que arranjou com o diabetes
E que olhava pra ela, de manhã, imenso
De dentro do copo d’água.

Minha mãe tinha uma dentadura
Proposta por estranho protético
Que lhe arrancara todos os dentes
Pra depois lhe vender o sorriso
Em tristes prestações.

O meu pai tinha uma hérnia inguinal
Que podia descer a qualquer hora.
Desesperados, o assistíamos colocar a funda
E depois agradecíamos na missa
O milagre das bolas intactas.

A mim, médicos dizem que estou bem
E que a despeito de outros vazios
Tenho um sopro no coração.




Juraci Dórea - Brasileiros-2002
Juraci Dórea, Brasileiros



Cyro de Mattos  • Cyro de Mattos
Itabuna, BA

CALVÁRIO

Na guerra que subverte
o canto geral da união.
Na solidão do cuspe,
do cravo a sensação.
Com o manto que afastou
o roxo dos caminhos.
Nesses tempos tristes
com o acento da exclusão.
Nas negações obsessivas
no lugar da compreensão.
Ó salvador dos humanos
estende-me tua mão.



Tarso de Melo  • Tarso de Melo
Santo André, SP

ENTRETANTO

todo dia é apenas mais um dia
do fim dos tempos:
ele dizia, enquanto
mergulhávamos no longo entretanto

era difícil saber, àquela altura,
que não restaria nenhuma Grande História
em que lançar nossos músculos
nenhuma missão à nossa espera

apenas acordar, acordar de novo
coberto pelo dia imenso, lançar os pés
sentir a hora descendo quente

o que de melhor se pode fazer?

fazer tudo de novo todos os dias
dizer tudo de novo todos os dias

plantar no dia a bomba do novo



Alexandre Guarnieri  • Alexandre Guarnieri
Rio de Janeiro, RJ

A QUEDA DE CONSTANTINOPLA

recebo com certa calma trágica (dos irremediados)
o resultado dos disparos das bombardas na amurada
(os golpes não páram, regulares, são violentas do-
ses entre as pausas cada vez menos esparsas e me-
nores) e enquanto refaço os cálculos (a contagem),
quanto ao saldo dos saques, do ataque contra esta
cidade, nenhum outro estranho (bárbaro ou turco-
otomano) tendo chegado tão longe quanto na noite
de hoje, me inspirou tamanho asco (ou descaso) por
quaisquer das conquistas dos pares romanos ou da
própria Bizâncio, seus papiros e avanços científi-
cos, todo o ferro e a platina dos ricos, derretida
nos cadinhos, e o tesouro precioso, todo o ouro
bem abaixo, no terror dos loucos (nosso calabouço),
quiçá o coração e os amores em descrédito, minhas
secretas lembranças da infância, também aprisionados
lá, naquelas celas eternas de pedra decrépita, mas
acima das nossas cabeças, já sem os sonhos, a arti-
lharia parabólica do inimigo mina cada vez mais o
nosso domínio enquanto o muro sofre quando lhe des-
pejam só a pólvora e o enxofre — a queda está pró-
xima /// foi-se o último óbice e meu nome está bem
perto de entrar para a História, entretanto despro-
vido da tão almejada glória ou da vitória - na ho-
ra H em que a horda torpe, tanto faz se pela fron-
teira sul ou norte, irrompe pelas falhas da muralha
fraturada às almas daqueles cujo último destino é
irreversível e que, mesmo desarmados, são açoitados
por cimitarras, além das mais variadas navalhas das
Arábias; eu sempre soube, minha dama, enquanto a ve-
jo atropelada pelo trânsito dos maometanos em transe,
que algo doce e sagrado como o amor conquistado, se-
ria perdido assim, entre golfadas e engasgos, num
grande lago de sangue e ácido (num caldo salgado) —
será um rubi ou um coágulo ? — pois Constantinopla,
após a degola, e já sem o graal da amada e do amado,
       agora não vale a guimba de um cigarro




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022



poesia.​net - 20 anos - Poetas participantes desta edição:

Dalila Teles Veras Ruy Espinheira Filho Gilberto Nable
Ruy Proença Mariana Ianelli Marcílio Godoi
Cyro de Mattos Tarso de Melo Alexandre Guarnieri

Poemas inéditos, cedidos pelos autores para a comemoração dos 20 anos do boletim.
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* Myriam Fraga, "Arte Poética", in Femina (1996)
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* Quadros de Juraci Dórea (1944-), pintor e poeta baiano