Número 503 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 1 de março de 2023

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«As folhas enchem de ffs as vogais do vento.» (Mario Quintana) *

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Ronaldo Costa Fernandes
Ronaldo Costa Fernandes



Amigas e amigos,

Após completar 20 anos e dar uma boa parada neste início de 2023, o poesia.​net está de volta. Abrem-se os trabalhos do ano com o poeta e romancista maranhense Ronaldo Costa Fernandes (São Luís, 1952-). Autor já conhecido dos leitores, Fernandes esteve aqui nas edições n. 421 (2019); n. 313 (2014); n. 263 (2009); e n. 126 (2005). É, portanto, um velho amigo da casa.

Desta vez Ronaldo Costa Fernandes traz ao boletim poemas de seu livro mais recente, A Invenção do Passado (7Letras, 2022). Para quem conhece o trabalho do poeta, os textos deste novo título mantêm a mesma tensão e a mesma contundência de textos que mergulham fundo em certos desvãos da aventura humana.

Começo a leitura da pequena seleção ao lado com o poema que dá título ao livro, “A Invenção do Passado”. O poeta, com certo espanto, encontra sua própria identidade: “Sou apenas personagem / de um sonho do qual nunca sairei”. Diz também que, quando morrer, os outros se lembrarão de sonhos que tiveram “com um personagem / chamado Ronaldo Costa Fernandes”.

Desde já, nos colocamos diante das seguintes indagações: o que é o tempo? E, mais especificamente, o que é o passado? O que foi aquilo que se viveu? Foi mesmo? Viveu mesmo? Foi exatamente do jeito que eu entendo, que você lembra, que o amigo conta? Nessa estonteante espiral de perplexidades entra, vibrante, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes.

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No texto seguinte, “O Perdão”, as inquirições continuam. Tem-se aí um poema tão poderoso que não se dobra aos limites de um comentário. “A lixa vai limando o tempo. / Mas ninguém escapa da folha áspera. / Da folha que retira camadas de anos / e dá a primeira mão do passamento”. Atenção, leitor. Passamento, ou seja, morte, falecimento. E o poema segue.

Mas onde está o perdão do título? Ah, “o perdão / é uma lixa cor-de-rosa / que alivia, lima, / corrompe o que já é corrompido, / logo por oposição, dá brilho no fosco”. Senhoras e senhores; amigas e amigos: temos aí poesia de altíssimo calibre! De queixo caído, leio, releio e fico pasmo.

Passemos ao poema seguinte, “Encontro Marcado”. Aqui, o autor apresenta suas dúvidas sobre a própria poesia. Desconfia dela: “às vezes marca encontro / e não aparece”. Acusa-a de atividades estranhas: “Já a vi no trottoir / das calçadas de má fama”. Apesar disso tudo, o poeta levanta sua bandeira branca: “O importante é que venha / com seu vestido de verbos, / sua girândola de imagens / e sua perversão pelo sublime”.

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No poema “O Espelho do Tempo”, voltamos à dimensão intangível dessas entidades chamadas presente, passado, futuro. Aí aprendemos que “Os espelhos são malditos / porque estão cheios de fantasmas”. Do mesmo modo, sabemos: “O espelho inveja a foto / que tudo retém e imobiliza”. E tudo vai findar na “câmera da memória”, essa máquina que não reflete mais nada, como um “espelho em que ninguém se mira”. Estamos diante de outro poema que vale a pena ler, reler e se encantar com cada invenção do poeta em rico momento de criação.

Vem, por fim, o último texto da seleção, “O Céu e o Inferno”. Surge aqui outra reflexão sobre arte poética. Bem ao seu estilo, o poeta embaralha as cartas da poesia com as vicissitudes da vida. E a conclusão é sempre poesia: “um homem na solidão/ é apenas um poema/ que ninguém lê”.

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Ronaldo Costa Fernandes é maranhense, criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília. Doutor em literatura pela UnB, escreveu em prosa, entre outros títulos, os romances O Viúvo (2005) e Um Homem é Muito Pouco (2010), a coleção de contos Manual de Tortura (2007) e o ensaio A Ideologia do Personagem Brasileiro (2007).

Como poeta, Costa Fernandes estreou com o volume Urbe, de 1975, hoje renegado. Vieram depois Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004), A Máquina das Mãos (2009), Memória dos Porcos (2012), O Difícil Exercício das Cinzas (2014), Matadouro de Vozes (2018) e A Invenção do Passado (2022).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Até breve, poeta
• Paulo Martins

Paulo Martins - Até breve, poetaO escritor baiano Paulo Martins lança Até Breve, Poeta (Kotter Editorial), livro de memórias da vida literária, com prefácio do poeta Ruy Espinheira Filho.

Quando: 9/3, quinta-feira, às 17h
Onde: Restaurante do Edinho
Av. Juracy Magalhães Júnior, 1624 - Ceasa do Rio Vermelho
Salvador - BA


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A invenção do passado

• Ronaldo Costa Fernandes


              



Roman Zakrzewski - 2006-02
Roman Zakrzewski, pintor polonês, 2006-02 (2006)


A INVENÇÃO DO PASSADO

Sou apenas personagem
de um sonho do qual nunca sairei.
E mesmo acordado,
repetirei as mesmas histórias
que chamarei de passado.
Ao nascer sonhei que nasci,
mas ao morrer
se apagarão todas as minhas ações
e os outros as lembrarão
como sonhos que tiveram
com um personagem
chamado Ronaldo Costa Fernandes.


O PERDÃO

A lixa vai limando o tempo.
Tem gente que se lixa para o tempo.
Mas ninguém escapa da folha áspera.
Da folha que retira camadas de anos
e dá a primeira mão do passamento.
Quando a lixa fica velha,
porque a lixa também tem sua lixa,
perde os dentes e saliva apenas esfregão.
A lixa arremata móveis,
gente, ferrovia, bola de gude, pensamento,
amores, dissídios, mas não fere o ódio,
nem outras moléstias de desaforo do sentimento.
Só a morte, que é a lixa final,
que logo dá superfície sem tinta,
consegue lixar o desacordo.
Há gente que diz que o perdão
é uma lixa cor-de-rosa
que alivia, lima,
corrompe o que já é corrompido,
logo por oposição, dá brilho no fosco.



Roman Zakrzewski - 2009-03
Roman Zakrzewski, 2009-03 (2009)


ENCONTRO MARCADO

Minha poesia é assim:
às vezes marca encontro
e não aparece.
Outras, chega atrasada
e não me conta por onde andou.
Tem vezes que a encontro ao acaso.
Tem outras que busco e busco
nos lugares conhecidos:
a casa, o trabalho,
o bar que ela frequenta.
Já a vi no trottoir
das calçadas de má fama.
Quanto mais ordinária
mais me atrai
no seu comércio do corpo
do verbo
— o verbo é licencioso —
ou da alma
— os substantivos
são mais comuns
na periferia do espírito.

O importante é que venha
com seu vestido de verbos,
sua girândola de imagens
e sua perversão pelo sublime.

Minha tara são as palavras
que gozam ao artifício
comum a dois gêneros
chamada imaginação.

Minha poesia não nasce poesia,
a poesia se torna poesia.
Minha poesia tem lábios grandes
e me sussurra.



Roman Zakrzewski - 1999-02
Roman Zakrzewski, 1999-02 (1999)


O ESPELHO DO TEMPO

No espelho, tudo cabe
e nada se fixa ou nele habita.
Os espelhos são malditos
porque estão cheios de fantasmas.
Fantasmas que vagaram
algum dia pelo reflexo fugidio.
O espelho inveja a foto
que tudo retém e imobiliza.
Por sua vez a foto
se ressente de variedade e vazio.
E reclama da fixidez
que deu eternidade
ao que é fluxo contínuo.
A foto é um espelho que se fixou,
o efêmero flash
que se fez memória.
A memória tem mais
de espelho que de foto,
embora as gentes queiram ver
nesses a fixação das águas do rio
como se fosse possível
um homem banhar-se
duas vezes no mesmo rio.
A memória é uma foto
que se mexe e se transforma
conforme se vê aquele
que olha para a câmera.

A câmera da memória
é volúvel, tem vários rostos,
e se movimenta como alguém
que faz caretas no tempo
diante do espelho, ou aparece,
se dilui, retorna mais velho,
e, por fim, não surge mais
sobre a superfície de vidro
como uma memória
ou espelho em que ninguém se mira.


O CÉU E O INFERNO DAS PALAVRAS

Um poema só se completa
quando alguém o lê.
Antes disso fica no limbo,
no purgatório das palavras.
Arde
na espera de outros olhos,
de olhos que acordem
as letras como os brinquedos
do Quebra-Nozes.
Não se pode dançar sem luz
— um balé no escuro
não se completa —
um homem na solidão
é apenas um poema
que ninguém lê.




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Carlos Machado, 2023



• Ronaldo Costa Fernandes
   in A invenção do passado
   7 Letras, Rio de Janeiro, 2022
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* Mario Quintana, "Prosódia", in Sapato Florido (1948)
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* Imagens: obras de Roman Zakrzewski (1955-2014), pintor polonês.