Número 522 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

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«Calo-me, espero, decifro. / As coisas talvez melhorem. / São tão fortes as coisas! // Mas eu não sou as coisas e me revolto.» (Drummond) *

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Ruy Espinheira Filho
Ruy Espinheira Filho



Amigas e amigos,

Nesta terça-feira, 12 de dezembro de 2023, este boletim completa 21 anos em atividade. Um brinde ao poesia.​net pelo seu aniversário!

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Lembrete: é o último boletim de 2023 com conteúdo poético. Haverá ainda uma edição com a retrospectiva do ano. Em seguida, o poesia.​net entra em recesso de verão. Esperamos voltar com mais poesia em fevereiro de 2024. No mais, um bom fim de ano e um excelente 2024 a todas e todos.

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Nesta edição, o poeta em destaque é o baiano Ruy Espinheira Filho (Salvador, 1942), que lançou recentemente o livro A Invenção da Poesia & Outros Poemas (Record, 2023). Há também uma coincidência: o autor faz aniversário no mesmo dia do boletim. Assim, as saudações se estendem ao poeta.

Conhecido e celebrado como o poeta da memória, Ruy Espinheira Filho nos oferece, nessa nova coletânea, uma espécie de lira dos oitent’anos — para usarmos uma expressão à la Manuel Bandeira, um dos poetas de sua predileção. Boa parte dos poemas são lembranças de amigos e familiares, muitos já levados pela indesejada das gentes.

É assim, por exemplo, com as figuras de “Família”, o primeiro poema da meia dúzia que selecionei para este boletim. Já na estrofe inicial, o passado dá o tom doloroso do poema: “Avós mortos, pai morto, mãe morta, / três irmãos mortos, / mortos muitos amigos”. Mais adiante, o texto revela que todas essas pessoas ausentes se reúnem diante de um relógio, cujos ponteiros imóveis marcam as “três horas / infinitas / da madrugada”.

No poema seguinte, “Conto de primavera”, mais pessoas que continuam a existir somente na memória. Aqui, num momento de extraordinária leveza, aparece um casal em ambiente doméstico. Aparentemente, os pais do poeta.

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Agora, no poema “Um movimento”, o poeta faz uma reflexão sobre o fluir do tempo, que começa com a poeta russa Marina Tsvetáieva e conclui, com certo ar de aceitação e enfado: “E assim vamos nós no tempo que corre/ e deixa escombros de tudo em nossa memória.” .

No próximo poema, o poeta revisita Verlaine, com “Uma canção de Outono”: “ai chegando um novo Outono, / sem Verlaine e sem violinos; / que seja como os meninos // felizes, de doce sono”. Observe-se a inicial maiúscula em Outono, em reverência aos simbolistas, não só o francês Verlaine, mas também a nomes inesquecíveis como o mineiro Alphonsus de Guimaraens.

A conclusão do texto é bonita e, como se podia esperar, também penumbrosa: “E, enfim, que este novo Outono / me leve aos mais belos cais, / antes que chegue o abandono // no Inverno de nunca mais”.

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Vem a seguir “Suavidade”, um poema bastante curioso. “Sonhei que havia morrido. / Uma morte suave, eu estava contente. / E suavemente caminhava / junto ao portão de um colégio em que estudara / ou apenas fingira / no início dos anos 1960”. Convido o leitor a conferir o sábio desdobramento desse sonho.

Leiamos agora o último poema da minisseleção, “Anotações sobre almas ilustres”. Trata-se, na verdade, de um longo poema dedicado a dois gênios de nossa prosa, Machado de Assis e Graciliano Ramos. As almas ilustres são personagens dos romances desses dois autores.

Selecionei um trecho no qual se destaca um personagem não humano, mas canino, a cadela Baleia, de Vidas secas. Aliás, não somente um animal-personagem, mas dois. Também entra em cena Quincas Borba, o cão do romance homônimo de Machado de Assis.

Nessa incrível e deliciosa discussão sobre figuras caninas, sobra espaço até para o poeta Vinicius de Moraes. Confira. O melhor, porém, é ler o poema inteiro, com direito a Rubião, Fabiano, Sinhá Vitória, o Eclesiastes e muito mais.

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Nascido em Salvador (1942), Ruy Espinheira Filho passou boa parte da infância e da adolescência em cidades do interior da Bahia. É professor aposentado da UFBA, onde atuou nas áreas de comunicação e letras. Entre seus livros de poesia mais recentes estão Nova Antologia Poética (Patuá, 2018); e Sonetos Reunidos & Inéditos (Patuá, 2020); e A Invenção da Poesia & Outros Poemas (Record, 2023).

O poeta Ruy Espinheira Filho já esteve aqui no poesia.​​net em outras edições: número 494 (2022); número 429 (2019); número 378 (2017); número 284 (2012); e número 18 (2003).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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poesia.​net, 21 anos

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Nova canção de outono


• Ruy Espinheira Filho


              



Cícero Dias - Mulher na varanda
Cícero Dias, pintor pernambucano, Mulher na varanda


FAMÍLIA

Pai, mãe, irmãos, amigos.
Família.
Avós mortos, pai morto, mãe morta,
três irmãos mortos,
mortos muitos amigos.

Três horas da madrugada
e eles estão aqui.
Comigo fitam o relógio sobre a mesinha
e ouvem a chuva cair.

Família.
Todos presentes,
inclusive o vasto tamarindeiro do quintal,
também entre os mortos
como aqueles cães e gatos e passarinhos
e as paredes da primeira casa.

Família.
Creio que não dormirei
esta noite.
O inverno está a caminho.
E até lá e além seguirei
conversando com todos.

Seguirei. Enquanto nos contemplar
esse relógio,
imóvel
para sempre
nas três horas
infinitas
da madrugada.


CONTO DE PRIMAVERA

Ela deixara as crianças dormindo e,
em sua cadeira de balanço,
tinha um ar sonhador.

A poucos metros,
na poltrona preferida,
ele lia, com grave atenção,
um volume de muitas páginas.
Isto até que sentiu
como que uma brisa suave
e desviou o olhar para a que
se embalava na cadeira,
mais uma vez constatando que ficava
a cada dia mais bonita.

E então, como se sentisse
uma carícia muito leve,
como a mais leve brisa,
ela suspendeu o embalo,
olhando para ele.

E sorriram.


Cícero Dias - Recordando
Cícero Dias, Recordando


UM MOVIMENTO

			a Rodrigo Lacerda

Marina Tsvetáieva escreveu que o tempo corre,
mas não corre para lugar nenhum,
só corre porque corre,
corre para correr, que seu correr é o fim
em si mesmo ou então,
o que ainda é pior,
um correr para fora de si mesmo,
de si, da ferida, do rasgo
para o qual tudo escorre...

E então fico aqui, neste começo de noite,
pensando no correr do tempo.
Em que na verdade sempre pensei,
desde a infância,
mas sem esta riqueza de palavras.

O tempo, que castiga o ser humano
desde que ele o percebeu.
E do qual escaparam as outras formas de vida,
que vivem numa bem menos dramática
dimensão.

Tudo passa com o tempo,
tudo corre com o tempo,
mas somente nós o interrogamos
em espanto e temor.
E então pensamos que podemos decifrá-lo,
ou ao menos iludi-lo,
o que nos leva aos mais assombrosos demônios
e às mais cintilantes mitologias.

E não compreendemos.
E não pensamos que não há o que compreender.
Não aceitamos.
E mergulhamos na imaginação redentora.
E de lá, se emergirmos,
continuaremos perplexos
e doloridos.

Há milênios meditamos sobre esse mistério.
E assim vamos nós no tempo que corre
e deixa escombros de tudo em nossa memória.
Escombros e escombros e escombros
do perdido,
que nos acompanharão até o rasgo
para o qual tudo escorre
no rumo de, como já foi dito,
lugar nenhum.


UMA CANÇÃO DE OUTONO

Vai chegando um novo Outono,
sem Verlaine e sem violinos;
que seja como os meninos

felizes, de doce sono.

Que seja amável comigo,
pois também sou outonal;
longe de mim todo o mal,

que só busco paz e abrigo.

Que me console, acalente
e, como terna quimera,
me conduza suavemente

às flores da Primavera.

E, enfim, que este novo Outono
me leve aos mais belos cais,
antes que chegue o abandono

no Inverno de nunca mais.


Cícero Dias - Paisagem com o bondinho
Cícero Dias, Paisagem com o bondinho


SUAVIDADE

Sonhei que havia morrido.
Uma morte suave, eu estava contente.
E suavemente caminhava
junto ao portão de um colégio em que estudara
ou apenas fingira
no início dos anos 1960.

Algumas pessoas percebiam
que eu estava morto
e me dirigiam cumprimentos.
Certamente estavam também mortas
devido à sua mansa
consideração.
Era algo confortante
cálido
estar morto.

Se eu soubesse que assim seria
não teria vivido
me perdido
tanto. E agora
já desperto
prossigo respirando essa profunda
suavidade.

Sim
quando despertei
tudo permaneceu.
E porque eu sentira
a suave morte
percebi que também poderia viver
suavemente
mesmo com suavidade retomar
o passeio junto ao portão
do colégio antigo
como se estivesse morto.

Até estar novamente morto
já não em sonho
para sempre
sempre
num tempo suave
suave
suave
um tempo
sem tempo algum.


ANOTAÇÕES SOBRE ALMAS ILUSTRES

			a 
			Machado de Assis
			e
			Graciliano Ramos,
			grandes almas ilustres,
			in memoriam

(trecho)


Depois, Baleia, de Graciliano Ramos
em Vidas secas. Sendo uma cachorra, mereceria
vir em primeiro lugar, por questão de gentileza,
mas aconteceu
que havia nascido muito depois do Quincas Borba,
que viveu e latiu ainda no século XIX,
enquanto Baleia foi
de quase meados do século XX.
Ambos, como escrevi acima,
cachorros ilustres. Como, aliás, muitos outros
que apareceram, antes ou depois,
na literatura e na arte, sobretudo na vida,
mesmo porque,
como se diz, o cão é o melhor amigo
do homem (embora
Vinicius de Moraes tenha dito
que é o uísque...), e não só capaz de salvá-lo
de muitas más situações quanto de aconselhá-lo,
amainando-lhe as demências. Assim, jamais seremos
suficientemente gratos ao auxílio canino,
generosidade fiel desde que o homem é homem,
provavelmente bem antes do
sapiens.




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Carlos Machado, 2023



Ruy Espinheira Filho
      in A invenção da poesia & outros poemas
      Record, Rio de Janeiro, 2023
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* Carlos Drummond de Andrade, “Nosso Tempo”, in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: quadros do pintor pernambucano Cícero Dias (1907-2003)