Número 524 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

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«A sombra do berço traça na parede / uma gaiola enorme.» (Elizabeth Bishop) *

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Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska



Amigas e amigos,

Neste primeiro boletim de 2024, decidi revisitar a obra da Prêmio Nobel polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012). Ao fazer uma releitura de seu livro Poemas (Cia. das Letras, 2011), fiquei impressionado com “Fim e Começo”, uma reflexão sobre a guerra. Como, neste momento, dois conflitos (na Ucrânia e na Faixa de Gaza) não saem do noticiário, entendi que fazia sentido trazer aqui, mais uma vez, a palavra de Wislawa Szymborska. A poeta já foi destaque por aqui nas edições n. 456; n. 372; e n. 265.

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(Uma observação entre parênteses. Com relação aos combates na Ucrânia e na Faixa de Gaza, é certo que ambos estão num contexto em que há tanques blindados, bombardeios, mortes e destruição material. Contudo, são guerras de natureza distinta. Na Ucrânia, em última instância, enfrentam-se duas superpotências, os Estados Unidos e a Rússia.

Em Gaza, a refrega na prática se resume a um lado: são forças militares israelenses contra civis palestinos, notadamente mulheres e crianças. Não há, portanto, como não usar a palavra genocídio. Em Gaza e na Ucrânia, a melhor saída é o cessar-fogo seguido de negociações. Aí está a solução menos penosa para a maioria dos palestinos, israelenses, russos, ucranianos, norte-americanos e as pessoas de boa vontade do mundo inteiro. Paz!)

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Passemos aos poemas. Abro a leitura com “Fim e Começo”, que foi o texto-chave para o retorno de Wislawa Szymborska ao boletim. No início, a autora descreve o dia a dia do pós-guerra e as dolorosas tarefas de reconstrução e redefinição da vida: “Depois de cada guerra / alguém tem que fazer a faxina. / Colocar uma certa ordem / que afinal não se faz sozinha”.

Entre as atividades, algumas são extremamente pesadas, não só para o corpo, mas também para o íntimo das pessoas. É preciso, por exemplo, tirar todo o entulho da estrada “para que possam passar / os carros carregando os corpos”.

E o poema segue. Também é necessário erguer novas casas e recuperar aquelas ainda passíveis de conserto. São trabalhos inumeráveis de (re)construção e acabamento, durante os quais muitos recordarão momentos do conflito.

Mas, com o tempo, os que têm a guerra na memória vão sendo substituídos por novas gerações, que já nada sabem sobre os terríveis tempos bélicos. Assim é a vida. Lamentavelmente, os horrores e sofrimentos de um conflito não parecem servir de ensinamento capaz de evitar no futuro a repetição de tragédias semelhantes.

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Em “Fim e Começo”, a guerra é um acontecimento genérico. Já no próximo poema, o conflito tem nome e endereço: “Vietnã”. Aqui, a figura central é uma mulher. Pode-se supor que ela seja uma militante empenhada na luta contra o invasor norte-americano. Mas também é plausível admitir que ela seja apenas uma pessoa do povo assustada com os rigores da guerra.

Qualquer que seja a hipótese, ela sabe que, no meio das escaramuças, as informações valem ouro. Portanto, a todas as perguntas, inclusive as que parecem neutras, ela responde da mesma forma: “Não sei”. Não sabe nem mesmo por que está escondida numa toca escavada na terra. Mas quando perguntam se as crianças que estão ali são seus filhos, ela imediatamente muda a resposta: “Sim”. Antes de ser pessoa comum ou militante, ela é mãe.

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Passemos agora a “Utopia”, o último poema da seleção e o único não associado à temática bélica. O primeiro verso oferece uma definição de “Utopia”: “Ilha onde tudo se esclarece”. As linhas seguintes traçam um retrato mais preciso desse lugar, onde para tudo há respostas, acompanhadas de provas sólidas e irrefutáveis.

E não é só: em Utopia todos entendem as coisas com extrema facilidade e são tomados por um sentimento de certeza. Há, porém, um único problema nessa ilha maravilhosa: é um lugar deserto, ninguém permanece lá.

Mesmo assim (isto não está no poema), é verdade que a utopia também representa o espaço para o sonho, o lugar ideal que se pode imaginar para tornar a vida melhor. O território de quem não se acomoda. Então, embora ninguém permaneça exilado na ilha, com certeza quem retorna de lá pode ajudar a tornar menos sufocante a existência do lado de cá, no continente.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A guerra e a ilha deserta

• Wislawa Szymborska


              



Albena Vatcheva - Mona Albena
Albena Vatcheva, pintora franco-búlgara, Mona Albena


FIM E COMEÇO

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.

Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mào
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.



Albena Vatcheva - Bleu
Albena Vatcheva, Azul


VIETNÃ

Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? — Não sei.
Desde quando está aqui escondida? — Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? — Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São.



Albena Vatcheva - Les demoiselles
Albena Vatcheva, As moças


UTOPIA

Ilha onde tudo se esclarece.

Aqui se pode pisar no sólido solo das provas.

Nào há estradas senão as de chegada.

Os arbustos até vergam sob o peso das respostas.

Cresce aqui a árvore da Suposição Justa
de galhos desenredados desde antanho.

A árvore do Entendimento, fascinantemente simples
junto à fonte que se chama Ah, Então É Isso.

Quanto mais denso o bosque, mais larga a vista
do Vale da Evidência.

Se há alguma dúvida, o vento a dispersa.

O eco toma a palavra sem ser chamado
e de bom grado desvenda os segredos dos mundos.

Do lado direito uma caverna onde mora o sentido.

Do lado esquerdo o lago da Convicção Profunda.
A verdade surge do fundo e suave vem à tona.

Domina o vale a Inabalável Certeza.
Do seu cume se descortina a Essência das Coisas.

Apesar dos encantos a ilha é deserta
e as pegadas miúdas vistas ao longo das praias
se voltam sem exceçào para o mar.

Como se daqui só se saísse
e sem voltar se submergisse nas profundezas.

Na vida imponderável.



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Carlos Machado, 2024



• Wislawa Szymborska
   in Poemas
   Tradução Regina Przybycien
   Companhia das Letras, São Paulo, 2011
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* Elizabeth Bishop, "Canções para uma cantora de cor",
 in Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop,
 trad. Paulo Henriques Britto
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* Imagens: quadros da pintora francesa nascida na Bulgária Albena Vatcheva (1967-)