Número 546 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

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«O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...» (Fernando Pessoa) *

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Chico Pedrosa
Chico Pedrosa


Amigas e amigos,

Apesar de existir há mais de 22 anos, o poesia.​net nunca trouxe a suas páginas um poeta de cordel. Chegou a hora: agora. Recentemente, descobri na internet o poeta paraibano Chico Pedrosa, que mostra suas rimas nesta edição. Nascido em Garabira-PB, em 1936, Pedrosa é poeta popular e declamador.

Filho do agricultor e cantador de coco Avelino Pedro Galvão, conhecido como Mestre Avelino, Pedrosa encontrou em casa, logo cedo, o estímulo para a poesia. Também sua mãe, Ana Maria da Cruz, era prima do cantador Josué Alves da Cruz.

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Além da influência familiar e regional, costuma-se apontar uma coincidência como prova da inclinação de Chico Pedrosa para a poesia. Ele nasceu em 14 de março, dia do nascimento do poeta baiano Castro Alves e celebrado como o Dia Nacional da Poesia. [Um detalhe: 14 de março é o Dia da Poesia, por tradição, mas nunca o foi, oficialmente. Há outro, oficial, sancionado em 2015: 31 de outubro, dia do nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Para nós, valem o dois.]

Aos 18 anos, Pedrosa começou a escrever folhetos de cordel, que vendia nas feiras da região. Mas, como se sabe, poesia não dá sustento para a família. Então, o poeta também trabalhou como representante de vendas.

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Chico Pedrosa já publicou três livros: Pilão de Pedra I; Pilão de Pedra II; e Raízes da Terra, Raízes do Chão Caboclo, além de vários folhetos de cordel. O autor também gravou três CDs (“Sertão Caboclo”, “Paisagem Sertaneja” e “No Meu Sertão é Assim”), registrando com a própria voz suas histórias de cordel.

Nome destacado da poesia popular, Pedrosa participa de encontros em várias cidades do país. Seu poema mais conhecido é “Briga na Procissão”, um cordel hilariante que se passa numa Sexta-feira da Paixão. É justamente esse texto que aparece aqui nesta edição do poesia.​net.

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Passemos à leitura de “Briga na Procissão”. Neste caso especial, praticamente não vou fazer comentários. Destaco apenas a riqueza dos personagens, a começar pelo capitão Justino Bento da Cruz, que mandava na cidade ficcional de Palmeira das Antas. Outra figura de destaque era dona Maria das Dores, que se encarregava de organizar a procissão com traços teatrais na Sexta-feira da Paixão.

E todo o enredo se desenvolve em torno do teatro processional. Todos os anos, figuras populares eram escolhidas por Dona Maria das Dores para interpretar os personagens da história que termina com a crucificação de Jesus. Assim, há pessoas representando Cristo, Judas, Caifás (o sumo sacerdote judaico que participou do julgamento de Cristo), São José, Maria, Madalena etc. Enfim, conforme a tradição, a Semana Santa movimentava a cidadezinha do interior.

O resto está no texto singularíssimo de Chico Pedrosa. A briga, citada no título, refere-se a um desentendimento entre atores durante a procissão. Mais não digo. Passem rápido à leitura. Confesso que, quando li este cordel pela primeira vez, explodi em gargalhada sozinho. Entendo perfeitamente o sucesso desta deliciosa história de cordel.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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LANÇAMENTO

Cais da memória
• Carlos Machado

Carlos Machado - Cais da memóriaAmigas e amigos: em março, lançarei em São Paulo novo livro de poemas: Cais da memória, publicado pela Editora Patuá. [Saiba mais sobre o livro neste endereço].

Quando:
Sábado, 22/03/2024,
das 17h às 22h

Onde:
Livraria Patuscada
Rua Luís Murat, 40 - 05436-050
Vila Madalena
São Paulo, SP


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Briga na procissão


• Chico Pedrosa


              



Alfredo Volpi - Festa de São João
Alfredo Volpi, pintor ítalo-brasileiro, Festa de São João


BRIGA NA PROCISSÃO

Quando Palmeira das Antas
Pertencia ao capitão
Justino Bento da Cruz
Nunca faltou diversão.
Vaquejada, cantoria,
Procissão e romaria
Sexta-feira da Paixão.
Na Quinta-feira Maior
Dona Maria das Dores
No salão paroquial
Reunia os moradores
Depois duma preleção,
Ao lado do capitão
Escalava a seleção
De atrizes e atores.
O papel de cada um
O capitão escolhia.
A roupa e a maquiagem
Eram com dona Maria.
O resto era discutido
Aprovado e resolvido
Na sala da sacristia.
Todo ano era um Jesus
Um Caifás e um Pilatos.
Só não mudavam a cruz
O verdugo e os maus tratos.
O Cristo daquele ano
Foi o Quincas Beija-flor.
Caifás foi Cipriano,
Pilatos foi Nicanor.


Alfredo Volpi - Fachadas
Alfredo Volpi, Fachadas


Duas cordas paralelas
Separavam a multidão
Pra que pudesse entre elas
Caminhar a procissão.
Cristo conduzindo a cruz
Foi não foi, advertia
O centurião perverso
Que com força lhe batia.
Era pra bater maneiro,
Mas ele não entendia,
Devido a um grande pifão
Que bebeu naquele dia
Do vinho que o capelão
Guardava na sacristia.
Cristo dizia: “Oh! Rapaz...
Vê se bate devagar.
Já tô todo encalombado,
Assim não vou aguentar.
Tá c’a gota pra doer.
Ou tu para de bater
Ou a gente vai brigar.
Jogo já essa cruz fora,
Tô ficando revoltado.
Vou morrer antes da hora
De ficar crucificado.”


Alfredo Volpi - Casario-1952
Alfredo Volpi, Casario (1952)


O pior é que o malvado
Fingia que não ouvia.
Além de bater com força,
Ainda se divertia.
Espiava pra Jesus
Fazia pouco e dizia:
“Que Cristo frouxo é você
Que chora na procissão?
Jesus, pelo que se sabe
Não era mole assim, não.
Eu tô batendo com pena,
Tu vai ver o que é bom
Na subida da ladeira
Da venda de Fenelon.
O couro vai ser dobrado,
Até chegar no mercado
A cuíca muda o tom.”
Naquele momento ouviu-se
Um grito na multidão.
Era Quincas que, com raiva,
Sacudiu a cruz no chão
E partiu feito um maluco
Pra cima de Bastião.
Se travaram no tabefe,
Pontapé e cabeçada.
Madalena levou queda,
Pilatos levou pancada.
Deram bofete em Caifás
Que, até hoje, não faz
Nem sente gosto de nada.


Alfredo Volpi - Grande fachada festiva-1952
Alfredo Volpi, Grande fachada festiva (1952)


Desmancharam a procissão,
O cacete foi pesado.
São Tomé levou um tranco
Que ficou desacordado.
Acertaram um cocorote
Na careca de Timote
Que até hoje é aluado.
Até mesmo São José,
Que não é de confusão,
Na ânsia de defender
Seu filho de criação
Aproveitou a garapa
Pra dar um monte de tapa
Na cara do bom ladrão.
A briga só terminou
Quando o doutor delegado
Interveio e separou
Cada santo pro seu lado.
Desde que o mundo se fez
Foi essa a primeira vez
Que Cristo foi pro xadrez
Mas não foi crucificado.



"Briga na Procissão", na voz do autor, Chico Pedrosa




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Carlos Machado, 2025



 Chico Pedrosa
   • “Briga na Procissão”
      texto obtido na internet
      Dados biográficos do autor: Sebrae-PB
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* Fernando Pessoa, "Hora Absoluta", in Obra Poética
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* Imagens: quadros do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988)