Número 547 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 12 de março de 2025

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«Como morre o homem, / como começa a? (...) / Quando dorme, morre? / Quando morre, morre?» (Drummond) *

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Roberval Pereyr
Roberval Pereyr


Amigas e amigos,

Autor já conhecido por quem acompanha o poesia​.net, o poeta baiano Roberval Pereyr acaba de lançar A mão no escuro, antologia baseada em seis livros de poesia, contendo ainda uma seleção de 19 poemas inéditos. Publicado pela editora Cavalo Azul, o livro tem prefácio do poeta Alexandre Bonafim.

Para esta edição, selecionei sete poemas, tendo o cuidado de não repetir textos já incluídos em outros boletins (edições n. 35, de 2003, e n. 308, de 2014). Vale frisar que Pereyr também já figurou em boletins coletivos.

Após escolher os poemas ao lado, tomei consciência de um detalhe: sem perceber, pincei apenas textos que praticamente tratam de um mesmo tema, as aventuras de um eu desencontrado, perdido em vários eus.

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Vamos aos poemas. O primeiro deles, “Cruel Ilusão”, vem do livro Concerto de Ilhas (1997). É curtíssimo: tem apenas dois versos decassílabos. Trata-se de uma dessas sentenças fortes, definitivas, encontradas com frequência na poesia de Pereyr: “Esperar, esperar o que não vem / como ninguém à espera de ninguém”.

Os dois próximos poemas provêm do livro Saguão de Mitos (1998). “A Inútil Lição” nos oferece um exemplo do eu lírico confuso em fazer sua autoidentificação. “Disseram que não sou eu,/ não contestei, consenti; // e que num tempo remoto/ fui o contrário de mim”.

O outro poema é “Tempo”. Nos dois primeiros dísticos, o poeta apresenta o “problema”: “Ladra insistentemente / no fundo da noite, um cão. // Ouvi-lo assim dissolve-me / num imenso não”. Mas o narrador não se contenta em dissolver-se numa enorme negação. Numa reviravolta filosófica, ele expõe que esse não está conectado a “todo sim” e a uma “vã memória/ que floresce em mim”. Embora seja um poema bem ritmado e breve, não é leve: sua leitura exige reflexão.

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Vêm agora dois poemas extraídos do livro Mirantes (2012): “Decisão” e “Duo”. O primeiro mostra mais uma das envolventes provocações lógicas, comuns no trabalho de Pereyr. Surge aí um sujeito poético que obstinadamente se opõe àquilo que se espera dele: “Se me buscarem, não vou. / Se me ofertarem, não quero. // Se me disserem quem sou, / direi que não sou, e espero”.

Além de manter pé firme nas negações, esse sujeito se diverte com antíteses, esgrimindo pensamentos que devem deixar tontos seus interlocutores. “Direi que esperar é tudo; / e que o que espero é nada”. Por fim, ainda afirma ser uma pessoa que, ao se deslocar, muda “conforme as feições da estrada”.

Em “Duo” apresenta-se outro indivíduo enigmático. Trata-se de alguém que tem um mestre a quem não conhece. O guru, por sua vez, também não faz ideia da existência de seu seguidor. Este, mesmo assim, sente-se guiado pelo mestre. No final, fica claro que o seguidor tem consciência de que seu líder (um deus?) não existe. Isso mostra que “Duo” é um poemeto de simplicidade apenas aparente.

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Os dois últimos poemas, “Distâncias” e “Narciso Lamenta”, foram extraídos da seção “Inéditos” de A mão no escuro. Em “Distâncias”, o eu desencontrado executa nova peripécia. Entra em cena um bêbado, e o narrador diz: “O bêbado oscila/ em torno do próprio/ eixo./ E enquanto vacila/ me deixo/ levar pelos seus trejeitos,/ e oscilo também”. Portanto, o narrador assume o ritmo do bêbado. Daí em diante, convido o leitor a verificar o que acontece. Em “Narciso Lamenta” a história é diferente. Mas o eu, agora narcísico, continua trançando seus nós e peripécias.

No prefácio de A Mão no Escuro, Alexandre Bonafim, ao discorrer sobre a pluralidade de eus na poesia de Pereyr, afirma: “Essa tensão de um eu a se perder em outros eus e, por conseguinte, numa face sem nome de um deus vazio, será pedra de toque na escritura de Pereyr e constituirá, na poesisa brasileira mais recente, um dos grandes êxitos de sua jornada de escritor”.

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Nascido em 1953 no município de Antônio Cardoso-BA, Roberval Pereyr reside em Feira de Santana desde os 11 anos de idade. Poeta e professor de literatura, seu nome está entre os nomes mais destacados da literatura baiana. Ao lado do também poeta e professor Antonio Brasileiro dirigiu a longeva revista literária Hera, publicada entre 1972 e 2005.

A obra poética de Roberval Pereyr engloba os seguintes títulos: As Roupas do Nu (1981); Ocidentais (1987); O Súbito Cenário (1996); Concerto de Ilhas (1997); Saguão de Mitos (1998); Nas Praias do Avesso (2004); Acordes (2010); Mirantes (2012); e, por fim, a antologia A mão no escuro (2024).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTOS

Três poetas apresentam novos livros nos próximos dias.


Versos para acalmar o vento
• Priscilla Barreto Menezes Navas

Priscilla Navas - Versos para acalmarA poeta sergipana Priscilla Barreto Menezes Navas lança a coletânea Versos para Acalmar o Vento. [Saiba mais sobre o livro neste endereço].

Quando:
Quinta-feira, 13/03/2024, 18h

Onde:
Museu da Gente Sergipana
Av. Ivo do Prado, 398
Centro - Aracaju, SE


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Cais da memória
• Carlos Machado

Carlos Machado - Cais da memóriaAmigas e amigos: estou lançando em São Paulo meu sexto livro de poemas: Cais da memória, publicado pela Editora Patuá. [Saiba mais sobre o livro neste endereço].

Quando:
Sábado, 22/03/2024,
das 17h às 22h

Onde:
Livraria Patuscada
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena - São Paulo, SP


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Pandemonias
• Ieda Estergilda

Ieda Estergilda - PandemoniasA poeta cearense Ieda Estergilda lança o livro Pandemonias. [Saiba mais sobre o livro neste endereço].



Quando:
Quinta-feira, 27/03/2024, 19h

Onde:
Livraria Patuscada
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena - São Paulo, SP


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Peripécias do eu


• Roberval Pereyr


              



Amedeo Modigliani - Adrienne - Mulher de franja-1917
Amedeo Modigliani, pintor italiano, Adrienne (Mulher de franja) (1917)


CRUEL ILUSÃO

Esperar, esperar o que não vem
como ninguém à espera de ninguém.

    Do livro Concerto de Ilhas (1997)


A INÚTIL LIÇÃO

Disseram que não sou eu,
não contestei, consenti;

e que num tempo remoto
fui o contrário de mim.

Mergulhado em meu avesso
buscando saber quem sou

errei o meu endereço
enquanto a vida passou.

TEMPO

Ladra insistentemente
no fundo da noite, um cão.

Ouvi-lo assim dissolve-me
num imenso não.

Mas um não que devora
sob todo sim

toda a vã memória
que floresce em mim.

    Do livro Saguão de Mitos (1998)



Amedeo Modigliani - Little servant girl-1916
Amedeo Modigliani, Pequena criada (1916)


DECISÃO

    A Ricardo Costa

Se me buscarem, não vou.
Se me ofertarem, não quero.

Se me disserem quem sou,
direi que não sou, e espero.

Direi que esperar é tudo;
e que o que espero é nada;

que quando viajo, mudo
conforme as feições da estrada.

DUO

Tenho um mestre que não conheço
e que me guia sem saber.
Não sabe meu endereço,
não sei seu nome: pra quê?

Só sei que me guia, e bem
ou mal
	me deixo reconduzir
aos mesmos vãos do real
em que me perco sem ir.

E ele, sem me dizer,
me diz que tudo está certo;
ao que eu, sem responder,
respondo: fique por perto,
mestre,
que estou perdido.
E ele, sem existir, me diz:
sim, meu filho, sim.
E tudo perde o sentido.

    Do livro Mirantes (2012)



Amedeo Modigliani - Jean Cocteau-1916
Amedeo Modigliani, Jean Cocteau (1916)


DISTÂNCIAS

O bêbado oscila
em torno do próprio
eixo.
E enquanto vacila
me deixo
levar pelos seus trejeitos,
e oscilo também.

O bêbado, a um metro
de si
tropeça nos próprios passos,
mas não se alcança,
	e cai.

E eu, que o sigo de perto,
tropeço em seu corpo
		e sigo
tentando encontrar comigo,
em vão.

E ouço, à distância, um “ai!”
Mas de quem, então?

NARCISO LAMENTA

Embriaguei-me de mim
e tive ressaca.

Depois aumentei a dose
e tive cirrose.

A medicina constata
e data o meu fim.

Não contesto: meu carma
é mesmo morrer de mim...

    Da seção “Inéditos”





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Carlos Machado, 2025



 Roberval Pereyr
   • in A Mão no Escuro: Antologia Poética
      Prefácio de Alexandre Bonafim
      Cavalo Azul, Franca-SP, 2024
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* Carlos Drummond de Andrade, "Especulações em Torno da Palavra Homem",
in A Vida Passada a Limpo (1959)
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* Imagens: quadros do pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920)