Número 548 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 02 de abril de 2025

poesia.net header

«Como vencer o oceano / se é livre a navegação / mas proibido fazer barcos?» (Carlos Drummond de Andrade) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook  facebook 
Giselle Vianna
Giselle Vianna


Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net apresenta o trabalho da poeta paulista Giselle Vianna (Campinas, 1981). A autora não é estreante em poesia. Tem quatro livros publicados: Interpeles (Komedi, 2008); Pau-Rodado (Patuá, 2016); Eclíptica: Poemas Venezianos (Benfazeja, 2019); e Intempestiva (Patuá, 2023). Os textos destacados nesta página pertencem ao livro mais recente.

Escritos entre 2016 e 2023, os poemas de Intempestiva revelam uma poeta com pleno domínio dos recursos de expressão. Não conheço as três obras anteriores de Giselle Vianna, então não sou capaz de imaginar seu processo evolutivo de escrita até chegar ao livro que tenho em mãos.

•o•

Para este boletim, selecionei oito poemas de Intempestiva. Passemos à leitura. “Backup”, palavra em inglês, vinda do jargão da informática, sugere aqui a ideia de “guardados íntimos”, “memórias”, “lembranças”. No texto, alguém recorda coisas “lá nesse sertão de alma/ onde a comida é rala/ e a farinha engrossa/ o caldo/ lá onde o desígnio é rio/ intermitente”.

O próximo poema, também com título em inglês, “Dark Room”, é curtíssimo. Anúncio de sofrimento antecipado: “as almas mal se tocam/ e os traumas já se roçam/ como dois ossos”. Ortopedia da alma. “Dessalga”, a operação de tirar o sal, é outro poema de dor: “não sei em que mar/ vai desaguar/ a minha dor cansada”.

•o•

Em “Fim”, “não há nada/ de novo”: o clima de enfado e lamentação continua; “é mesma festa/ de ontem à noite/ hoje/ no acender das luzes”. Embora estejamos lendo poemas colhidos no livro de forma não sequencial, tem-se a impressão de que todos eles fazem parte de um poema único, dominado por um clima de perda e penumbra.

No poema “Tempo do Desejo”, o ambiente se torna menos carregado, já que “a ânsia”, embora associada a uma “ideia vaga”, aponta para a frente, para o desejo de viajar, “de virar vontade”. Então, quem sabe, daí venha a surgir algo mais alegre e positivo.

•o•

Vem agora uma pequena mudança de tom. O poema “A tempo”, embora comece com a palavra “bruma”, caminha para a abertura de um “clarão”: “algo/ relampeja/ no inverno de teus olhos”. Sol de inverno, mas sol. Contudo, há também um mal disfarçado perigo: o vocábulo “inverno” é muito próximo de “inferno”...

Declaradamente inspirado no filme Amazing Grace (documentário sobre a gravação do disco homônimo da cantora Aretha Franklin, em 1972), o poema “África” é, como está em seu último verso, uma “descoberta de nascentes”. A poeta tenta mostrar a dança de timbres e sopros africanos, a voz de Gilberto Gil, “o som/ dos tantãs/ o samba e o soul”, tudo isso combinado para gerar o fenômeno experimentado na voz de Aretha.

Vem, por fim, o poema “Fênix”. Nele a poeta exibe sua destreza ao trabalhar com palavras paroxítonas terminadas em x: látex, tórax, clímax, córtex, vórtex. De quebra, outras com sons e grafias similares como extorquir, fórceps, bíceps, drops e Quéops. Mais uma vez, uma operação violenta e sombria: “extorquir/ o clímax/ do amor/ a fórceps”.

•o•

Formada em Direito (USP) e doutora em Sociologia (Unicamp), Giselle Vianna empreendeu longa pesquisa em Mato Grosso que resultou em sua tese “Ser e Não Ser Livre: a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso”. Nesta entrevista, de 2020, ela conta suas descobertas sobre esse tema.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



•o•

PÓS-LANÇAMENTO

Cais da memória
• Carlos Machado

Carlos Machado - Cais da memóriaAmigas e amigos: quero agradecer a todas e todos que compare-ceram, no sábado 22 de março, ao lançamento de meu livro Cais da memória, na Livraria Patuscada, em São Paulo. Para quem não pôde ir lá, ou não mora em São Paulo, o livro está disponível no site da Editora Patuá.

•o•

Visite o poesia.net no Facebook e no Instagram.

facebook  facebook 



•o•



No inverno de teus olhos


• Giselle Vianna


              



Guto Lacaz - Boia
Guto Lacaz, artista multimídia paulistano, Boia


BACKUP

lá no umbral
umbilical, no bico
da primeira mamadeira
lá na murcha folhagem
do ipê transplantado
onde o pé largou a terra
para dar o passo
lá nesse sertão de alma
onde a comida é rala
e a farinha engrossa
o caldo
lá onde o desígnio é rio
intermitente
onde oscila o sinal
de internet e, de repente,
é lápis sem ponta o que era
traço, o suco faz-se sulco: é inverno
— na ponta seca do compasso,
lá onde o mundo cresce, lá
onde algo se perde,
lá — e somente lá —
é que eu existo
se a memória fenece
na cama
da calma, no imemorial
átomo
no antílope azul
e seu último sono terrestre

DARK ROOM

sôfrego, trôpego
amor germinal:
as almas mal se tocam
e os traumas já se roçam
como dois ossos



Guto Lacaz - Jarros (1)
Guto Lacaz, Jarros 1


DESSALGA

não sei que água
vai dessalgar
a carne seca
da minha boca

não sei em que mar
vai desaguar
a minha dor cansada

não sei que palavra
vai nomear
essa água salgada:
que é suor
que é lágrima
que é enxurrada

FIM

não há nada
de novo
é o mesmo corpo
que não desperta
o mesmo afeto
que já não basta
o mesmo coração
que não bate
é o mesmo brilho
nas taças
vazias
nas promessas, nas mentiras,
são as mesmas palavras
é a mesma festa
de ontem à noite
hoje
no acender das luzes



Guto Lacaz - Sombras (1)
Guto Lacaz, Sombras 1


TEMPO DO DESEJO

selado o envelope
— cavalo onde o desejo
vem montado a galope —
resta a travessia
passo por passo
milha por milha
náutica
o cruzar de um mar
de percalços

a ânsia viaja — aeronave
de uma ideia vaga —
enquanto aguarda
do outro lado do mapa
lento, real, cargueiro,
o tempo naval
do desejo virar vontade

A TEMPO

bruma
que apaga um adeus no horizonte

frente fria
que traz chuva e boas ondas

segredo
que levanta os lábios
derrubados pelo tempo

clarão
de sol encoberto
pelo refletor das nuvens:

algo
relampeja
no inverno de teus olhos



Guto Lacaz - Ora bolas
Guto Lacaz, Ora bolas


ÁFRICA

    inspirado no filme Amazing Grace

vejo a flor
sem ter visto cair a semente
sinto no vento quente
o timbre de Gil
o rhythm & blues
o soprar do siroco
e do son, o som
dos tantãs
o samba e o soul
de Aretha Franklin
sinto em tudo
que sou o calor
da mãe eterna, fonte
da minha voz, luz
ardente da aurora
no sol poente:
na foz,
a descoberta das nascentes

FÊNIX

    à Larissa

extrair
na faca
o látex
do tórax
extorquir
o clímax
do amor
a fórceps
explodir
a bíceps
barreiras
do córtex
existir
no vórtex
do tempo
de um drops
ou de Quéops




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
facebook.com/avepoesia
instagram.com/cmachado.poesia
Carlos Machado, 2025

Foto: Victor Alfaro


 Giselle Vianna
   • in Intempestiva
      Patuá, São Paulo, 2023
_____________
* Carlos Drummond de Andrade, "Rola Mundo", in A Rosa do Povo (1945)
______________
* Imagens: desenhos do artista multimídia paulistano Guto Lacaz (1948-)