Amigas e amigos,
No início deste mês, completou 93 anos o jornalista, ensaísta, professor e poeta Florisvaldo Mattos (Uruçuca, 1932),
um dos intelectuais mais queridos e celebrados da Bahia. Do alto de suas nove bem vividas décadas, Flori, como é carinhosamente
tratado pelos seus próximos, também acaba de lançar o livro Catorze Janelas Abertas - Sonetos Reunidos, com Inéditos
(1953-2023), publicado pela P55 Edição.
Trata-se de uma alentada reunião de sonetos colhidos em oito coletâneas de poemas do autor, acrescida de inéditos, como o
próprio título indica. Não contei quantos poemas o volume contém (a inexistência de um sumário me desestimulou), mas é fácil
estimar. O livro contém 232 páginas. Se subtrairmos prefácio, notas e homenagens, calculo que sobram cerca de 170
páginas para os poemas. Como, em vários casos, os poemas envolvem múltiplos sonetos, é de se esperar que haja no livro
uma invejável coleção de pelo menos 150 sonetos! Ave, Florisvaldo!
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De fato, há sonetos escritos em múltiplos padrões. Muitos deles, clássicos, fazem referências a deuses gregos e romanos.
Outros se curvam aos deuses do jazz, uma conhecida devoção de Florisvaldo Mattos. Há também os que se voltam para o amor e suas
peripécias. Portanto, é difícil fazer uma seleção. Então, estabeleci que deveria pinçar apenas seis poemas.
Pedestre que sou, preferi ficar com sonetos mais do chão. Sonetos nos quais Mestre Flori — longe das entidades greco-romanas
e das fundas reflexões sobre a vida — trata de questões mais chãs e cotidianas. Passemos à leitura de nossa meia dúzia de
sonetos selecionados.
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O primeiro poema, “A Cabra”, é talvez o mais festejado de Florisvaldo Matos. Um soneto de alta expressividade lírica, no
qual o poeta traça o retrato de um gracioso mamífero caprino. Destaco o terceto final: “teu pelo, residência da ternura,/
onde fulguras na manhã suspensa:/ flor animal, sonora arquitetura”.
Vem a seguir o soneto “Dias de 1942 (na mata)”, no qual o poeta registra como recebia, pelo rádio, no sul da Bahia,
aos 10 anos de idade, as notícias da Segunda Grande Guerra, na Europa. Há soldados, tanques e combates na Bavária,
mas ali perto, à luz dos vaga-lumes, “o silêncio da mata (...) / amortece o eco das calamidades / enquanto escuto a
voz de Orlando Silva”. É a era do rádio, e nela brilha Orlando Silva (1915-1978), grande sucesso da época, largamente
conhecido como “o cantor das multidões”.
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O soneto seguinte, “Vozes da Mercadoria”, também faz parte das memórias do autor. São suas impressões de menino que
vem da área rural e chega à vila de Água Preta (hoje cidade de Uruçuca) para fazer o curso primário: “Agora adeus às
sensações bucólicas./ Agita-se o comércio; estou na vila./ (...) Na calçada de paralelepípedos, / abre-se o sol
risonho do dinheiro”.
Em “Sonetinho Chistoso”, o poeta dá um salto no tempo e, já octogenário, empreende uma visita marota a um shopping
center. “Portei-me como um legítimo/ rapaz em gozo de férias”, confidencia o poema. Após vagar pelas galerias do
centro comercial, ele traz à lembrança o poeta Federico García Lorca: “E senti-me igual a Lorca,/
quando conduzia ao rio,/ fazendo sorrir os juncos,/ a sua casada infiel;/ como um cigano legítimo”.
E viva a imaginação poética. Só mesmo ela pode trazer os juncos da Andaluzia lorquiana para os nada líricos corredores
de um shopping em Salvador. Só mesmo a jovialidade do poeta Florisvaldo para costurar de forma tão envolvente duas
situações tão improváveis.
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O quinto poema de nossa seleção é o “Soneto dos Quatro Elementos”. Aqui, o poeta se põe a refletir sobre a passagem
do tempo e os quatro elementos clássicos da natureza: água, terra, fogo e ar. A conclusão é formidável: “Ao fim nos
resta uma única verdade:/ o nosso cabedal é o calendário”.
Por fim, Em “Velhas Estações de Trem”, o poeta — que viu as ferrovias ainda em plena atividade — descreve com emoção
a convivência com as gares de outrora. “Ó trilhos despertados na saudade, / curvas que a mão dos anos enferruja!”.
Tem-se aí um soneto de feição inglesa (com dois últimos versos rimando entre si) que traz toda a poesia das velhas estradas
de ferro que o Brasil, com os olhos tapados por interesses automobilísticos, simplesmente entregou à ferrugem do
tempo. Mas o eu poético insiste: “Ainda vejo passar o maquinista,/ o guarda-freios, lépido, o foguista,/
a me acender a lenha da memória”.
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Natural de Uruçuca, no sul baiano, Florisvaldo Mattos (1932-) formou-se em direito na Universidade Federal
da Bahia, mas optou pelo jornalismo. Nos anos 60, fez parte do grupo nuclear da chamada Geração Mapa, artistas
que se reuniam em torno da revista Mapa, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. Seu livro de estreia,
Reverdor, saiu em 1965.
Em seguida, publicou Fábula Civil (1975); e A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996).
Mares anoitecidos (Imago, 2000); e Galope amarelo e outros poemas (Edições Cidade da Bahia, 2001).
Sua Antologia Poética e Inéditos, de 2017, foi antecedida pelo volume Poesia Reunida e Inéditos
(Escrituras, 2011). O autor publicou ainda Cacaueiros - Poesia. Conto. Teatro (Mondrongo, 2022) e
Catorze Janelas Abertas - Sonetos Reunidos, com Inéditos (1953-2023) (P55 Edição, 2024).
Florisvaldo Mattos é também ensaísta e publicou estudos como Estação de prosa & diversos
(Memorial das Letras, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates (Assembleia Legislativa
da Bahia/Academia de Letras da Bahia, Salvador, 1998); e Travessia de Oásis - a sensualidade na poesia de
Sosígenes Costa (Sec. de Cultura da Bahia, 2004).
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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