Número 549 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 16 de abril de 2025

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«Uma noite, sentei a beleza no meu colo. — E a achei amarga. — E injuriei-a.» (Arthur Rimbaud) *

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Florisvaldo Mattos
Florisvaldo Mattos


Amigas e amigos,

No início deste mês, completou 93 anos o jornalista, ensaísta, professor e poeta Florisvaldo Mattos (Uruçuca, 1932), um dos intelectuais mais queridos e celebrados da Bahia. Do alto de suas nove bem vividas décadas, Flori, como é carinhosamente tratado pelos seus próximos, também acaba de lançar o livro Catorze Janelas Abertas - Sonetos Reunidos, com Inéditos (1953-2023), publicado pela P55 Edição.

Trata-se de uma alentada reunião de sonetos colhidos em oito coletâneas de poemas do autor, acrescida de inéditos, como o próprio título indica. Não contei quantos poemas o volume contém (a inexistência de um sumário me desestimulou), mas é fácil estimar. O livro contém 232 páginas. Se subtrairmos prefácio, notas e homenagens, calculo que sobram cerca de 170 páginas para os poemas. Como, em vários casos, os poemas envolvem múltiplos sonetos, é de se esperar que haja no livro uma invejável coleção de pelo menos 150 sonetos! Ave, Florisvaldo!

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De fato, há sonetos escritos em múltiplos padrões. Muitos deles, clássicos, fazem referências a deuses gregos e romanos. Outros se curvam aos deuses do jazz, uma conhecida devoção de Florisvaldo Mattos. Há também os que se voltam para o amor e suas peripécias. Portanto, é difícil fazer uma seleção. Então, estabeleci que deveria pinçar apenas seis poemas.

Pedestre que sou, preferi ficar com sonetos mais do chão. Sonetos nos quais Mestre Flori — longe das entidades greco-romanas e das fundas reflexões sobre a vida — trata de questões mais chãs e cotidianas. Passemos à leitura de nossa meia dúzia de sonetos selecionados.

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O primeiro poema, “A Cabra”, é talvez o mais festejado de Florisvaldo Matos. Um soneto de alta expressividade lírica, no qual o poeta traça o retrato de um gracioso mamífero caprino. Destaco o terceto final: “teu pelo, residência da ternura,/ onde fulguras na manhã suspensa:/ flor animal, sonora arquitetura”.

Vem a seguir o soneto “Dias de 1942 (na mata)”, no qual o poeta registra como recebia, pelo rádio, no sul da Bahia, aos 10 anos de idade, as notícias da Segunda Grande Guerra, na Europa. Há soldados, tanques e combates na Bavária, mas ali perto, à luz dos vaga-lumes, “o silêncio da mata (...) / amortece o eco das calamidades / enquanto escuto a voz de Orlando Silva”. É a era do rádio, e nela brilha Orlando Silva (1915-1978), grande sucesso da época, largamente conhecido como “o cantor das multidões”.

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O soneto seguinte, “Vozes da Mercadoria”, também faz parte das memórias do autor. São suas impressões de menino que vem da área rural e chega à vila de Água Preta (hoje cidade de Uruçuca) para fazer o curso primário: “Agora adeus às sensações bucólicas./ Agita-se o comércio; estou na vila./ (...) Na calçada de paralelepípedos, / abre-se o sol risonho do dinheiro”.

Em “Sonetinho Chistoso”, o poeta dá um salto no tempo e, já octogenário, empreende uma visita marota a um shopping center. “Portei-me como um legítimo/ rapaz em gozo de férias”, confidencia o poema. Após vagar pelas galerias do centro comercial, ele traz à lembrança o poeta Federico García Lorca: “E senti-me igual a Lorca,/ quando conduzia ao rio,/ fazendo sorrir os juncos,/ a sua casada infiel;/ como um cigano legítimo”.

E viva a imaginação poética. Só mesmo ela pode trazer os juncos da Andaluzia lorquiana para os nada líricos corredores de um shopping em Salvador. Só mesmo a jovialidade do poeta Florisvaldo para costurar de forma tão envolvente duas situações tão improváveis.

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O quinto poema de nossa seleção é o “Soneto dos Quatro Elementos”. Aqui, o poeta se põe a refletir sobre a passagem do tempo e os quatro elementos clássicos da natureza: água, terra, fogo e ar. A conclusão é formidável: “Ao fim nos resta uma única verdade:/ o nosso cabedal é o calendário”.

Por fim, Em “Velhas Estações de Trem”, o poeta — que viu as ferrovias ainda em plena atividade — descreve com emoção a convivência com as gares de outrora. “Ó trilhos despertados na saudade, / curvas que a mão dos anos enferruja!”. Tem-se aí um soneto de feição inglesa (com dois últimos versos rimando entre si) que traz toda a poesia das velhas estradas de ferro que o Brasil, com os olhos tapados por interesses automobilísticos, simplesmente entregou à ferrugem do tempo. Mas o eu poético insiste: “Ainda vejo passar o maquinista,/ o guarda-freios, lépido, o foguista,/ a me acender a lenha da memória”.

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Natural de Uruçuca, no sul baiano, Florisvaldo Mattos (1932-) formou-se em direito na Universidade Federal da Bahia, mas optou pelo jornalismo. Nos anos 60, fez parte do grupo nuclear da chamada Geração Mapa, artistas que se reuniam em torno da revista Mapa, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. Seu livro de estreia, Reverdor, saiu em 1965.

Em seguida, publicou Fábula Civil (1975); e A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996). Mares anoitecidos (Imago, 2000); e Galope amarelo e outros poemas (Edições Cidade da Bahia, 2001). Sua Antologia Poética e Inéditos, de 2017, foi antecedida pelo volume Poesia Reunida e Inéditos (Escrituras, 2011). O autor publicou ainda Cacaueiros - Poesia. Conto. Teatro (Mondrongo, 2022) e Catorze Janelas Abertas - Sonetos Reunidos, com Inéditos (1953-2023) (P55 Edição, 2024).

Florisvaldo Mattos é também ensaísta e publicou estudos como Estação de prosa & diversos (Memorial das Letras, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates (Assembleia Legislativa da Bahia/Academia de Letras da Bahia, Salvador, 1998); e Travessia de Oásis - a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (Sec. de Cultura da Bahia, 2004).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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Catorze janelas abertas


• Florisvaldo Mattos


              



Tarsila do Amaral - E.F.C.B.
Tarsila do Amaral, pintora modernista paulista, E.F.C.B. (1924)


A CABRA

Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —

teu pelo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

DIAS DE 1942 (NA MATA)

    Ao tio José Matos, in memoriam

Na sala familiar, à luz sombria
do candeeiro, a mulher cose; o homem ouve
o rádio a urrar, na noite que prospera,
horrores de longínquo drama. Horrores.

“Há soldados e tanques na Bavária”,
anuncia o locutor de voz possante.
O pai rumina fainas de comércio;
preso ao chão, o olhar pastoreia números.

Lá fora pisca: é luz de vaga-lumes.
De dentro acaso espio a noite vasta,
que convida a sonhar com um novo dia.

O silêncio da mata abraça as árvores
e amortece o eco das calamidades,
enquanto escuto a voz de Orlando Silva.



Tarsila do Amaral - Cartão Postal
Tarsila do Amaral, Cartão postal (1929)


VOZES DA MERCADORIA

Agora adeus às sensações bucólicas.
Agita-se o comércio; estou na vila.
Avisto ruas, becos, uma praça.
Na calçada de paralelepípedos,
abre-se o sol risonho do dinheiro.
Aqui, o recanto da veneração,
que se reserva às tropas de cacau,
ao som das estaladas dos tropeiros;
lá, o sacro império da mercadoria:
tabuletas retumbam seda e mescla,
calças de brim, o luxo dos sapatos;
ali fregueses para casimiras.
Caixeiros de camisa-manga-curta
vendem as novidades dos estoques.

SONETINHO CHISTOSO

Portei-me como um legítimo
rapaz em gozo de férias:
depois de almoçar com amigos,
sem dispensar umas taças
de portentoso chileno,
cortei cabelo no shopping,
percorri suas galerias,
parei lá para um sorvete
saboroso de goiaba.
E senti-me igual a Lorca,
quando conduzia ao rio,
fazendo sorrir os juncos,
a sua casada infiel;
como um cigano legítimo.



Tarsila do Amaral - Antropofagia
Tarsila do Amaral, Antropofagia (1929)


SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS

    A JC Teixeira Gomes, no dia dos seus 80 anos, 09/03/2016

Cansei-me de pensar no que era o dia,
se ele entre dois crepúsculos se evade.
Cansei de me perder nessa agonia,
fosse hora calma, fosse tempestade.

Juntei a vida inteira os Elementos
e a cada um dispensei olhar de justo.
Se regem mundos, regem os momentos,
não conseguem parar o sol injusto.

A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses
que governam e nutrem a humanidade,
como me adverte o oráculo de Elêusis.

Não podemos mudar de itinerário.
Ao fim nos resta uma única verdade:
o nosso cabedal é o calendário.

VELHAS ESTAÇÕES DE TREM

Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.

Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.

Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.

Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.




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Carlos Machado, 2025


 Florisvaldo Mattos
   • in Catorze Janelas Abertas - Sonetos Reunidos com Inéditos (1953-2023)
      P55 Edição, Salvador, 2024
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* Arthur Rimbaud, in Uma Temporada no Inferno (1873)
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* Imagens: quadros da pintora modernista paulista Tarsila do Amaral (1886-1973)