Número 550 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 7 de maio de 2025

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«Os deuses vendem quando dão. / Compra-se a glória com a desgraça. / Ai dos felizes, porque são / Só o que passa!» (Fernando Pessoa) *

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Ruy Proença
Ruy Proença


Amigas e amigos,

Este é nossa edição n. 550 — um belo número redondo, equivalente a 50 coleções de 11 boletins. Às vezes, nem eu mesmo acredito que chegamos tão longe. Mais uma vez, viva a Poesia! E vamos em frente.

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O autor em destaque nesta edição é conhecido de longa data por quem acompanha o poesia.net. Poeta e tradutor, Ruy Proença já compareceu várias vezes a esta página. Desta vez, ele retorna trazido por dois de seus novos trabalhos, as plaquetes Coeficiente de Adversidade (Primata, 2025) e Frente Fria (Galileu Edições, 2024).

Edições leves e simpáticas, muito bem diagramadas, esses cadernos — um com 17 e o outro com 15 poemas — constituem um meio interessante de publicar poesia. Normalmente, as coletâneas poéticas reúnem duas, três ou mais divisões, cada uma contendo textos associados a uma ideia ou temática. A plaquete, de certo modo, equivale a uma dessas divisões, distribuída de forma isolada.

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Em Coeficiente de Adversidade, Ruy Proença apresenta poemas que refletem sobre o decurso do tempo e nossas mudanças físicas e psicológicas diante do fluir dos anos, especialmente o envelhecimento e a perspectiva concreta de um dia não estarmos mais aqui.

Frente Fria, a outra plaquete, reúne poemas voltados para pequenas experiências do dia a dia, tais como cortar as verduras para fazer uma salada; a mulher que passa de bicicleta; ou o pensamento que vagueia em torno de situações triviais — ou da mais alta expressividade, a exemplo do Big Bang.

Para esta edição, selecionei quatro poemas de Coeficiente de Adversidade e dois de Frente Fria. Vamos à leitura.

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No primeiro poema, “Passagem para o Inorgânico”, o poeta compara a velhice a um fenômeno das árvores urbanas: “a velhice/ é como uma folha seca/ que se desprendeu”. Em “Longevidade” vem outra vez a passagem do tempo, a chegada da velhice e as transformações no corpo: “a velhice/ chegou// altura e peso/ diminuem sem parar”.

Com o tempo vêm também as transformações nos hábitos e costumes, e mesmo a mudança nos objetos do cotidiano. É o que discute o poema “Contra o Amor e a Guerra Não Há Guarda-Chuva”. Diz o poeta: “daqui a vinte anos/ se alguém ainda me ler/ talvez esse alguém/ nem saiba mais/ o que foi drone ou telefone”. Mas o desaparecimento não se resume aos objetos. Com alta dose de realismo, o poema avança: observa que, “daqui a vinte anos”, talvez o poeta também esteja “dissolvido/ apagado/ morto/ na noite insone”.

O poema “Publicidade” bate na mesma tecla do anterior, com uma pequena ajuda da mitologia grega. O texto é um anúncio da empresa de turismo Caronte S.A., que convida para a excursão Meandros do Estige. Ou seja, um passeio pelo rio Estige, ao longo do qual o barqueiro Caronte (aqui, pelo jeito, dono da empresa) transporta as almas dos mortos recentes. Ironicamente, o anúncio recomenda que os passageiros levem chapéu e protetor solar. Turismo de primeira (e última) classe.

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Vêm agora os poemas de Frente Fria. “Cura” parte de uma situação banal (a quebra de um vaso) para fazer uma reflexão cheia de verdade: “melhor/ um vaso/ de cacos colados/ que/ um não-vaso”.

Em “Lago das Pombas” a personagem principal é uma ave pousada no beiral de uma escola de balé. O narrador supõe o que porventura pensa essa pomba musical e todo o poema vai desaguar nas bailarinas adolescentes que, como a ave visitante, “quase voam” em seu bailado.

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Nascido em São Paulo, Ruy Proença (1957), é engenheiro formado pela USP. Estreou na poesia com o livro Pequenos Séculos (Klaxon, 1985). Publicou em seguida os seguintes títulos: A Lua Investirá com Seus Chifres (Giordano, 1996); Como um Dia Come Outro (Nankin, 1999); Visão do Térreo (Editora 34, 2007); Coisas Daqui (SM, 2007); e Caçambas (Editora 34, 2016). Proença traduziu os poetas franceses Boris Vian e Paol Keineg (Histórias Verídicas (Dobra, 2014).

O autor já esteve aqui no poesia.​net nas edições n. 441 (2020); n. 343 (2015); n. 267 (2009); e n. 43 (2003).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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Passagem para o inorgânico


• Ruy Proença


              



Viola Babol - Amaryllys
Viola Babol, pintora polonesa, Amarílis


PASSAGEM PARA O INORGÂNICO

uma folha se desgarra da árvore e cai
outra folha cai
e outra

o vento
quando vem
arranca as folhas secas

a velhice
é como uma folha seca
que se desprendeu

na calçada
os transeuntes caminham
sobre um tapete de folhas

ainda há algo de belo nisso
assim como vemos beleza
num fóssil

LONGEVIDADE

o relógio disparou

galopantes
os anos se vão

a velhice
chegou

altura e peso
diminuem sem parar

amanhã
me olharei no espelho
com auxílio de uma lupa

invejarei até a mosca
por saber voar



Viola Babol - Geometric muse
Viola Babol, Musa geométrica


CONTRA O AMOR E A GUERRA
NÃO HÁ GUARDA-CHUVA

hoje em dia
enviaria para você
uma legião de drones
que lançassem
uma chuva de rosas
e poesia

infelizmente
daqui a vinte anos
se alguém ainda me ler
talvez esse alguém
nem saiba mais
o que foi drone ou telefone

talvez pior —
só fique o drama
a dor o trauma
dos gafanhotos
de guerra —
drones

daqui a vinte anos
estarei eu também
dissolvido
apagado
morto
na noite insone

PUBLICIDADE

a Viação Fluvial
Caronte S.A.
convida para o tour
Meandros do Estige

encontro: domingo às 9
na Praça Central

previsão de tempo: poucas nuvens
(levar chapéu e protetor solar)

contribuição consciente — sugerem-se
duas moedas para o barqueiro
e um quilo de ração
para o vigilante Cérbero



Viola Babol - Twins
Viola Babol, Gêmeas


CURA

melhor
um vaso
de cacos colados
que
um não-vaso

as formas
são mais belas
que o nada
simplesmente
porque são

melhor
um vaso
de cacos colados —
nele
as flores se ajeitam

LAGO DAS POMBAS

a pomba no beiral do telhado
da escola de balé Cisne Negro
empresta meus olhos

com ar zen
contempla a Zona 1 arborizada
e os prédios ao fundo
iluminados pelo sol do fim de tarde

ouvirá Tchaikovsky no andar de baixo?

saberá que ali no quarto andar da escola
adolescentes fazem do corpo asas
para um dia quase voar como ela?

jovens, cuidado,
não se aventurem
além do quase




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www.algumapoesia.com.br
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Carlos Machado, 2025

Foto: Daniel Kersys


 Ruy Proença
   • “Passagem para o Inorgânico”, “Longevidade”, “Publicidade”
      e “Contra o Amor e a Guerra Não Há Guarda-Chuva”
      in Coeficiente de adversidade
      Primata, São Paulo, 2025
   • “Cura” e “Lago das Pombas”
      in Frente Fria
      Galileu Edições, Londrina-PR, 2024
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* Fernando Pessoa, “O das quinas”, in Mensagem (1934)
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* Imagens: quadros da pintora polonesa Viola Babol (1989-)