Número 552 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 4 de junho de 2025

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«Nada me desassossega / mais que o sossego.» (Ronaldo Costa Fernandes) *

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Mar Becker
Mar Becker


Amigas e amigos,

Nesta edição o poesia.​net destaca a poeta gaúcha Mar Becker, com poemas extraídos de seu livro mais recente, Noite Devorada (Círculo de Poemas, 2025). Nascida em Passo Fundo (1986) e residente em São Paulo, Mar Becker (Marceli Andresa Becker, no registro civil) é formada em filosofia. É também autora das coletâneas Cova Profunda é a Boca das Mulheres Estranhas (Círculo de Poemas, 2024); Canção Derruída (Assírio & Alvim Portugal, 2023); Sal (Assírio & Alvim Brasil, 2022); e A Mulher Submersa (Urutau, 2020).

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Noite Devorada, pelo menos nos textos selecionados à direita, reúne uma coleção de poemas de amor. Vamos à leitura. (Mar Becker não dá títulos aos poemas. Assim, como preciso de nomes para fazer referências, identifico-os com palavras do primeiro verso, escritas entre colchetes.)

Em “[Porque uma de mim chama]”, o eu poético se divide em duas pessoas: “(...) uma de mim chama / mas a outra hesita”; “(...) uma de mim espera a noite / mas a outra guarda a manhã”. O motivo, revelado mais adiante, é a ação do amor, que é também dividida: “numa de mim quero dizê-lo / mas na outra calá-lo”. O tema é outro, porém a música mais remota deste poema lembra “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar: “Uma parte de mim / é todo mundo; / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo”.

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No poema seguinte, outra página de lírica amorosa, a pessoa poética entende que o amor fragiliza tudo o que toca. Assim, como se deixou tocar pelo amor, tem medo de “desabar a um / tremor de pálpebras”. Bonito. E, de fato, fragilíssimo.

A atmosfera de magia e encantamento continua, no mesmo timbre, em “[Aquele que me ama]”. Diz a poeta: “aquele que me ama sabe que na mulher amada dói uma / cidade invisível”. E como tornar visível essa cidade? Somente à pouca luz, responde o poema.

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Talvez por causa dessa necessidade de revelação no escuro, no próximo texto, “[Aproxima-te do amor]”, o eu lírico recomenda que se deve acercar do amor “sem muitas perguntas”. O amante precavido tem medo de assustar o pássaro do amor. Ave, como se sabe, pode sair voando de repente — e adeus.

No poema a seguir, “[Eu me pergunto]”, Mar Becker empreende um diálogo com o poeta português Eugénio de Andrade (1923-2005): “ensina-me, eugénio: / esse teu modo de amor / de olhar o mar / no mar”.

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O exercício marítimo, feito em parceria com o poeta luso, continua em “[É o mar que ensina a perder]”. Diz o poema: “é o mar que ensina a ouvir palavras como / quebrassem umas sobre / as outras — / na busca de uma flor antiga sem país”.

Nos dois últimos poemas de nossa breve seleta, Mar Becker desenvolve outros temas. No primeiro, afirma: “escrever é negociar com a língua um / modo mais feroz de calar”. Dá o que pensar. É como se o que resta escrito, em última instância, represente uma forma — cruel, enraivecida — de não dizer.

Em “[Diminuí meu nome próprio]”, um poema em prosa, Mar Becker explica por que reduziu seu prenome Marceli para Mar. Leia os motivos e veja que têm muito a ver com os poemas “[Eu me pergunto]” e “[É o mar que ensina a perder]”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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Um tremor de pálpebras


• Mar Becker


              



Roman Zakrzewski -2014-23
Roman Zakrzewski, pintor polonês, 2014-23


[PORQUE UMA DE MIM CHAMA]

porque uma de mim chama
mas a outra hesita

porque uma de mim espera a noite
mas a outra guarda a manhã

porque se cruzam na passagem, e uma olha
mas a outra desvia

porque permaneci no meio, e
o amor deita sombra em minha boca —
e numa de mim quero dizê-lo
mas na outra calá-lo

na outra, este medo de ferir com a voz

[PORQUE O AMOR TORNA FRÁGIL]

porque o amor torna frágil tudo o que toca
e porque eu mesma não evitei que
tocasse meu corpo
meus ossos
minha respiração
meu sono
por isso temo por mim —
pelo risco de desabar a um
tremor de pálpebras


Roman Zakrzewski -2000-05
Roman Zakrzewski, 2000-05


[AQUELE QUE ME AMA]

aquele que me ama deita os olhos em mim
sabe que tudo é brevidade, agora
tudo é rastro

aquele que me ama sabe que na mulher amada dói uma
cidade invisível
sabe também que, para torná-la visível, é preciso
acessar essa mulher à pouca luz —
enquanto ainda se confundem um no outro
ruína e sonho

[APROXIMA-TE DO AMOR]

aproxima-te do amor sem muitas perguntas
aprende-o impensado, intocado ainda
sem perguntas aproxima-te, como descobrindo no
tempo um tempo sem 
palavras
com medo de que
se chamado, o amor
(esse pássaro)
se assuste


Roman Zakrzewski -2005-06
Roman Zakrzewski, 2005-06


[EU ME PERGUNTO]

	Tudo era claro
	jovem, alado.
	O mar estava perto.
	Eugénio de Andrade
eu me pergunto se não posso olhar o mar como tu olhas
se em mim o mar estará perto, se também eu
descobrirei um dia puro, em que
tudo será claro

eu me pergunto se não aprenderia
se aos meus olhos o mar será toda a vida o que foi toda vez
rastro, retalho
a luz represada no quarto de costura
queimando no voal

pergunto se percorrerei sempre longas distâncias em
pés tão pequenos, se meus mapas do mundo
serão sempre fábulas, perdidos em cantos
de folhas de cadernos

eu me pergunto se até o fim escreverei a palavra mar
com esta minha caligrafia de
poucas mãos
— de quem não sabe equilibrar o próprio nome
numa língua —

ensina-me, eugénio:
esse teu modo de amor
de olhar o mar
no mar

[É O MAR QUE ENSINA A PERDER]

é o mar que ensina a perder

ensina outra gravidade
outra respiração
outro sangue

é o mar que ensina a ouvir palavras como
quebrassem umas sobre
as outras —
na busca de uma flor antiga sem país

a esquecer enfim —
é o mar que ensina a ir

e a brilhar como no escuro brilham navios cargueiros
e corpos amando


Roman Zakrzewski -2014-22
Roman Zakrzewski, 2014-23


[ESCREVER É NEGOCIAR]

escrever é negociar com a língua um
modo mais feroz de calar

[DIMINUÍ MEU NOME PRÓPRIO]

diminuí meu nome próprio, de marceli para mar, na tentativa de que em mim a operação pressionasse o corpo a alcançar um correlato sanguíneo para este paradoxo da língua: sustentar numa palavra muito pequena, mar, a imagem do imenso, a devastação, assim forçado, empurrado, o uivo conseguiria enfim projetar-se





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Carlos Machado, 2025


 Mar Becker
      in Noite Devorada
      Círculo de Poemas, São Paulo, 2025
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* Ronaldo Costa Fernandes, in Matadouro de Vozes (2018)
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* Imagens: quadros do pintor polonês Roman Zakrzewski (1955-2014)