Número 11

13/09/2015

«tem que ter palavra para ser humano / tem que ser humano para ter palavra» (Ricardo Aleixo) *
 


         Charles Simic

Caros,

O artigo ao lado, "Por que ainda escrevo poesia" (Why I still write poetry), é um depoimento bem-humorado escrito pelo poeta sérvio-americano Charles Simic, uma das vozes mais importantes da poesia contemporânea nos Estados Unidos.

O texto trata de sua experiência como escritor e de como a figura do poeta é vista pela imprensa e as pessoas no dia a dia. O original foi publicado com data de 15 de maio de 2012 na revista The New York Review of Books. Fiz a tradução do artigo e achei oportuno apresentá-lo a poetas e interessados em poesia no Brasil.

Nascido em Belgrado, na antiga Iugoslávia, em 1938, Simic passou a guerra e o imediato pós-guerra em seu país natal e aos 15 anos mudou-se para Paris. Em 1954, aos 16, transferiu-se com a mãe e um irmão para os Estados Unidos a fim de se juntar ao pai, que já residia lá. Charles é na verdade um apelido. Seu nome original, em sérvio, é Dušan Simić.

Nos Estados Unidos, Simic fixou-se em Chicago e depois graduou-se em linguística na Universidade de Nova York. Hoje é professor emérito da Universidade de New Hampshire, onde ensina desde 1973. Foi também editor de poesia da revista literária nova-iorquina The Paris Review.

•o•

O boletim poesia.net já enfocou a obra de Charles Simic em três edições:


Carlos Machado


 

 



 

Por que ainda escrevo poesia

            Charles Simic


O autor sérvio-americano fala de sua experiência e de como a figura do poeta é vista pelas pessoas no dia a dia



Pessoa e Casais Monteiro
Charles Simic em foto de 2014



Quase no fim da vida, quando estava bem velhinha e recolhida a uma casa de repouso, minha mãe surpreendeu-me um dia perguntando se eu ainda escrevia poesia. Respondi que sim, e ela me olhou com ar de incompreensão. Tive de repetir o que disse, até que ela suspirou e balançou a cabeça, provavelmente pensando consigo mesma: esse meu filho sempre foi um pouco sem juízo.

Agora que estou em meus setenta, de vez em quando pessoas que não me conhecem também fazem aquela mesma pergunta. Muitas delas, suspeito, esperam escutar de mim que afinal tomei juízo e abri mão daquela tola paixão juvenil, mas ficam visivelmente surpresas ao me ouvir confessar o contrário. Elas parecem pensar que há nisso algo completamente pernicioso e até chocante, como se, em minha idade, eu estivesse namorando uma colegial e saindo com ela para andar de patins.

Outra pergunta que poetas, jovens e velhos, enfrentam em entrevistas é quando e como decidiram se tornar poetas. Assume-se que houve um momento no qual o poeta percebeu que não havia outro destino para ele senão escrever poesia, momento seguido pelo anúncio aos familiares — o que leva a mãe a exclamar “Oh, Deus, onde foi que erramos para merecer isto?” e o pai a brandir o cinturão e sair perseguindo o atrevido pela casa afora.

Muitas vezes fui tentado a dizer na cara dos entrevistadores que escolhi a poesia com o objetivo de pôr as mãos naquele grande prêmio em dinheiro, pois dizer a eles que em meu caso nunca houve uma decisão como essa inevitavelmente os deixa frustrados. Eles querem ouvir algo heroico e poético, então digo que eu era um colegial que escrevia poemas para impressionar as garotas, mas sem nenhuma ambição além dessa.

Como não sou um falante nativo do inglês, eles também me perguntam por que não escrevi meus poemas em sérvio e querem saber como tomei a decisão de abandonar minha língua-mãe. Mais uma vez, minha resposta lhes parece frívola quando explico que, para a poesia funcionar como instrumento de sedução, a primeira exigência é que ela seja entendida. Nenhuma garota americana se interessaria por um sujeito que lê para ela poemas em sérvio, enquanto os dois tomam Coca-Cola de canudinho.

O mistério para mim é que eu continuei escrevendo poesia, mesmo quando não havia mais nenhuma necessidade daquilo. Meus primeiros poemas eram embaraçosamente ruins e os que vieram logo depois não eram muito diferentes. Conheci pela vida afora muitos jovens poetas com imenso talento que desistiram da poesia depois de lhes dizerem que não eram gênios. Ninguém nunca cometeu esse erro comigo, e assim eu segui em frente.

Arrependo-me agora de ter destruído meus primeiros poemas, pois não lembro mais quem eles tomavam como modelo. Quando os escrevia, eu lia principalmente ficção e tinha escasso conhecimento dos poetas contemporâneos e modernistas. O único contato mais amplo que eu tivera com a poesia ocorreu no ano em que frequentei a escola em Paris, antes de vir para os Estados Unidos. Lá, não só nos faziam ler Lamartine, Hugo, Baudelaire, Rimbaud e Verlaine como também nos levavam a decorar poemas deles e recitá-los diante da classe.

Isso era um pesadelo para mim, um falante rudimentar do francês — e diversão garantida para meus colegas, que estouravam de rir com minha pronúncia, que destroçava algumas das mais belas e justamente famosas linhas da poesia e da prosa francesas. Durante anos, não fui capaz de avaliar o que aprendi naquelas aulas. Hoje, torna-se claro para mim que meu amor à poesia vem daquelas leituras e recitativos, que produziram em mim um impacto mais profundo do que eu era capaz de compreender quando jovem.

Há outra coisa em meu passado que só há pouco tempo eu compreendi que contribuiu para minha perseverança em escrever poesia — meu amor ao jogo de xadrez. Aprendi a jogar em Belgrado durante a guerra. Quem me ensinou foi um professor de astronomia aposentado, quando eu tinha seis anos de idade. Nos anos seguintes, tornei-me capaz de vencer não somente garotos de minha idade, mas também muitos adultos da vizinhança. Minhas primeiras noites de insônia, relembro, deveram-se às partidas que perdia e ficava recordando em minha cabeça. O xadrez me fez obsessivo e persistente.

Desde então, eu já não era capaz de esquecer um lance errado e cada derrota humilhante. Eu adorava as partidas em que cada lado era reduzido a poucas peças e nas quais cada movimento se revestia de grande importância. Ainda hoje, quando o oponente é um programa de computador (chamo-o de “Deus”) que me supera em cada nove de dez partidas, não apenas me curvo a sua superior inteligência, mas também acho minhas derrotas mais interessantes que minhas parcas vitórias.

Os tipos de poemas que escrevo — em geral, curtos e que exigem retoques sem fim — com frequência me lembram os jogos de xadrez. Dependem de palavra e imagem serem postas nos lugares adequados e sua finalização deve ter a inevitabilidade e a surpresa de um xeque-mate executado com elegância.

Claro que é fácil dizer tudo isso agora. Quando eu tinha 18 anos, minhas preocupações eram outras. Meus pais haviam se separado e eu estava sozinho, trabalhando num escritório em Chicago e frequentando a universidade à noite. Depois, em 1958, quando me mudei para Nova York, mantive o mesmo tipo de vida. Escrevia poemas e publicava alguns deles em revistas literárias, mas não esperava muito daquela atividade. As pessoas com quem eu trabalhava e convivia não faziam a mínima ideia de que eu era um poeta. Eu também pintava um pouco e achava mais fácil confessar esse interesse a pessoas estranhas.

Tudo que eu sabia com alguma certeza a respeito de meus poemas é que não eram tão bons quanto eu desejava que fossem e que eu estava determinado, para minha própria paz de espírito, a escrever algo que não me deixasse embaraçado ao mostrar aos meus amigos literários. Nesse meio tempo, apareceram outras coisas mais prementes, como casar, pagar o aluguel, frequentar bares e clubes de jazz e, toda noite, antes de dormir, armar as ratoeiras com manteiga de amendoim em meu apartamento na Rua 13 Leste.

[Tradução: Carlos Machado]



 

poesia.net
Outras Palavras

Carlos Machado, 2015

•  Outras Palavras
    Artigo "Why I Still Write Poetry", de Charles Simic
    in The New York Review of Books
   
May 15, 2012
_______________
* Ricardo Aleixo, "Lema",
  in Mundo Palavreado (2013)