Número 14

27/12/2016

«Melancolias, mercadorias espreitam-me.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


       Caetano Veloso


Caros,

A crônica ao lado discute as rimas escandalosamente luxuosas usadas por Caetano Veloso na letra da canção "Escândalo".

O texto foi publicado originalmente no site cultural Kultme, em novembro de 2015.

Carlos Machado


 

 



 

Escândalo: rimas de luxo na canção popular

            
Carlos Machado


A letra da canção "Escândalo", de Caetano Veloso, exibe algumas das rimas mais criativas da música brasileira



Caetano Veloso
Caetano Veloso: rimas supercriativas


Eu sempre defendi, e defendo, que escrever poesia de livro e criar letra de música são duas artes independentes, obviamente com alguns pontos em comum. Ao assumir esse ponto de vista, não faço mais do que repetir o que dizem compositores inquestionáveis como Chico Buarque, Edu Lobo e o saudoso Fernando Brant. E, para que não se pense o contrário, até acredito que a arte da letra é mais sofisticada, porque está sujeita a certas balizas, certos limites inexistentes na poesia.

A letra de música tem suas regras. E não são simples. De cara, o letrista é obrigado a abrir mão de eventuais preciosismos que cabem na poesia de livro. Não dá para musicar algo como “A máquina do mundo”, de Drummond, um longuíssimo poema de reflexão filosófica. Acho que o próprio tema é fundo demais para a música popular.

Para fazer uma letra criativa, é preciso — além de respeitar a música — ficar de olho na prosódia, manter o tom coloquial. Ao falar em prosódia, refiro-me à imperiosa necessidade de fazer as sílabas tônicas das palavras coincidirem com as tônicas da música. Caso contrário, resultam pronúncias forçadas, palavras com acentos deslocados.

Além disso, o estoque de temas da música popular parece menor. Talvez 90% ou mais de todas as letras fiquem no espaço das canções de amor: saudades, ciúmes, vinganças, dores de cotovelo. A linguagem coloquial é praticamente obrigatória. A letra também deve aceitar a redundância e, não raro, o nonsense. E, se for o caso, um lá lá lá, um ô ô ô, recursos perfeitamente válidos nas letras, mas impensáveis na poesia de livro.

É por isso que acho a arte de colocar palavras em música popular mais complicada que a poesia. Uma diferença óbvia entre as duas é que a letra se faz para cantar. Em raros casos ela funciona na leitura desacompanhada da música. Mas há muitos exemplos em que a letra se apossa com galhardia de certos procedimentos poéticos.


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Todo esse prólogo vem a propósito de citar uma letra genial, a do blues “Escândalo”, de Caetano Veloso. Creio que nela há altos lances de elaboração poética, notadamente nas rimas.


ESCÂNDALO

(Caetano Veloso)

Mas, doce irmã, o que você quer mais?
Eu já arranhei minha garganta toda atrás de alguma paz
Agora nada de machado e sândalo
Eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós

Também sou fã da lua sobre o mar
Todas as coisas lindas dessa vida eu sempre soube amar
Não quero quebrar os bares como um vândalo
Você que traz o escândalo irmã luz

Eu marquei demais, tô sabendo
Aprontei demais, só vendo
Mas agora faz um frio aqui
Me responda, tô sofrendo

Rompe a manhã da luz em fúria a arder
Dou gargalhada, dou dentada na maçã da luxúria, pra quê?
Se ninguém tem dó, ninguém entende nada
O grande escândalo sou eu aqui só

Ouça a música com Ângela Rô-Rô:

Ângela Rô-Rô, "Escândalo", em gravação de 1981



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O autor simplesmente estraçalha nas rimas. Há várias delas ocultas no texto, construídas mediante a justaposição de outras palavras. O eixo é “escândalo”. Daí vêm “sândalo”, “vândalo”. Até aí, rimas ricas, porém normais.

Depois, percebem-se as rimas bilionárias em “sã da loucura”, “fã da lua”, “manhã da luz”, “maçã da luxúria”. São várias, mas nem todas perceptíveis numa primeira audição, ou em qualquer audição distraída. Essas rimas são surpresas, objetos não identificados. Acho até que Caetano iria perpetrar mais uma, “irmã da luz”, que repetiria o procedimento criativo, e deixou por menos. Ficou em “irmã luz”, uma meia rima.

Quem fala na letra é uma personagem feminina (“Eu já estou sã da loucura”) dirigindo-se a outra (“Ó doce irmã”). A primeira gravação dessa música foi feita pela Ângela Rô-Rô. E, aparentemente, a canção inspira-se no arranca-rabo que a Rô-Rô teve com a também cantora Zizi Possi. Em 1981, um caso entre as duas acabou em escândalo ― que é, não por acaso, o título da música do Caetano ― e delegacia de polícia. A canção foi gravada nesse mesmo ano.

Um detalhe. Não sei se em outros lugares havia isso, creio que sim. No interior da Bahia, nos anos 50/60, era comum encontrar nas residências um quadro com a seguinte inscrição: “Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere”. Essa frase seria de Saadi (1184-1283?), um poeta persa.

É a isso que Caetano se refere no verso “Agora nada de machado e sândalo”. Para quem não conhece a frase, a referência parece solta, sem sentido. Em outras palavras, ele está dizendo: nada daquele embate destrutivo em que uma parte fere a outra. A letra é na verdade uma bandeira branca, um pedido de paz e declaração de solidão: “O grande escândalo sou eu aqui só”.


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Vale lembrar outro detalhe. Caetano, nessa letra, usa recursos que são mais comuns na música popular em inglês. Língua monossilábica, o inglês facilita a construção desse tipo de rima cujo som é obtido mediante a junção de mais de uma palavra.

Com excelente ouvido, ele já fazia isso desde muito antes. É um recurso que aproveita bastante o fato de que o texto vai ser cantado. Sem a música, talvez não alcançasse o efeito desejado. O exemplo a seguir é da letra de “Não identificado”, de 1967, nos tempos heroicos da tropicália:

Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico,
um anticomputador sentimental.

Fora da canção, no papel, talvez esse texto seja lido sem que se perceba a rima.


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Há outro exemplo admirável. Caetano consegue fazer duas rimas diferentes com uma só palavra. Estranho, mas real, esse procedimento está nos últimos versos de “Tigresa” (1977):

E eu corri pra o violão num lamento
E a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento

Observem que instrumento rima, simultaneamente, com lamento e azul. A primeira rima (lamento/instrumento) é normal, normalíssima. Só que, no segundo verso, azul deixa no ar esse final em /u/. E instrumento, dentro da melodia, termina com certa ampliação da sílaba átona final, /tu/, que funciona como se fosse uma tônica /tú/. E aí está a segunda rima. É só ouvir e perceber. Quem não conhece a música, e apenas lê a letra, dificilmente consegue perceber essa artimanha criativa.

Eis a “Tigresa” na voz de Gal Costa, na versão original de 1977 (clique na imagem para ouvir):


Gal Costa
Gal Costa, "Tigresa", do álbum Caras e Bocas (1977)


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É claro que aqui citei apenas alguns procedimentos poéticos. Os músicos ficam possessos quando se faz isso. Estão certos. Porque na verdade uma canção é um conjunto indissociável de letra e melodia (além de arranjo, interpretação etc. etc.) ― e não pode ser olhada somente por um de seus componentes.




poesia.net
Outras Palavras

Carlos Machado, 2016

•  Escândalo: rimas de luxo na canção popular
    Crônica publicada originalmente
    no site cultural Kultme
   
9 de novembro de 2015
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* Carlos Drummond de Andrade
  no poema "A Flor e a Náusea"
  in A Rosa do Povo (1945)