A mulher de Ló
Poemas. Editora Patuá, São Paulo, 2018

“E a mulher de Ló olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.”
(Gênesis, 19:26).
A partir deste versículo da Bíblia,
surge a perplexidade de Machado.
Inconformado, sai em defesa
da mulher “sem nome” e “sem
voz”. Ao questionar o motivo
da “desobediência”, desce à profundidade
do humano: terá sido
“saudade de casa”, compaixão
pelos “olhos esbugalhados dos
homens” de Sodoma e Gomorra?
Terá sido o “choro de uma
criança”, o “relincho estertorante
dos cavalos”? Ou “apenas vontade
de saber”?
Sem esperança de resposta, segue
desafiando os escribas do livro e
os doutores da lei. O eu lírico,
cada vez mais identificado com
a filha de Eva, evoca teresas e
marias de várias regiões do país
do feminicídio: “Ai de ti, mulher
de Ló, / se te mostrares sábia. //
Coitada de tua alma, / se te mostrares
sólida. // Coitado de teu
corpo, / se te mostrares lúcida. //
Ai de ti, Capitu.”
Opiniões críticas sobre A mulher de Ló
O livro inteiro é um só poema, partindo da história bíblica da mulher de Ló (ou Lot), que, olhando para trás quando Deus está destruindo Sodoma,
foi transformada em estátua de sal. É uma história estranha, dramática, de uma tragédia absurda. Por que a mulher de Ló foi transformada numa estátua
de sal — somente por ter olhado para trás? Sim, era proibido, os fugitivos da família não poderiam olhar para trás — mas o castigo é completamente desmedido.
Carlos Machado pega esta história, enfoca-a de diversas maneiras e a leva à mulher de um modo geral, a todas as mulheres do mundo em todos os tempos. Assim,
na mulher de Ló todas as mulheres são vistas em seus dramas existenciais. O poeta vai aos inícios da história das mulheres e seus problemas (suas culpas?)
existenciais e vem até o inquietante presente. Trata-se de um poema cheio de humanidade e de um intenso lirismo. Lê-lo nos leva a ver com mais lucidez a
condição humana.
Em seu último livro de poemas, sob a perplexidade de um sensível e compassivo olhar masculino, Carlos Machado busca compreender a condenação da mulher de Ló, transformada em estátua de sal, no intrigante episódio bíblico da destruição de Sodoma e Gomorra.

Não houve tempo / para o grito. / Foi súbito. Susto. Sal. (“O grito”)
Ler A mulher de Ló me foi um exercício feliz de ler poesia, porque é poesia de primeira qualidade, porque é poesia que tem algo a dizer, porque é poesia de destruição, porque quer destruir o destruidor, porque sinaliza algo novo, porque ouve a voz da mulher silenciada, porque vai ao inferno e nos conta.
É um livro regido pela interdição. É o interdito, é a palavra “não” dirigida à protagonista que faz girar o motor reflexivo e lírico. É sob o signo
da negação que a mulher se torna o ser do qual nada foi descoberto.
no jornal Suplemento Literário de Minas Gerais,
edição n. 1381, nov-dez 2018, pp. 21-23
Os poemas sugerem, apontam, acusam, indicam, levantam véus, pensam e fazem pensar, sobretudo
através de perguntas. Questionamentos que remetem a situações dramáticas destes nossos tempos
hipócritas que tentam ocultar e justificar a misoginia, a violência e os “castigos” aplicados
às mulheres, prática de um verdadeiro mal social, historicamente repetido e culturalmente
construído e assimilado.
num dos posfácios de A mulher de Ló
Finalmente, o poeta desafia a ira divina: “quer se casar com a mulher de Ló”.
E, então, anuncia a grande louvação final, ao som de atabaques baianos, até que todos nós,
juntos, sejamos a mulher de Ló — agora libertados do silêncio com que os opressores tentam
nos sepultar.
num dos posfácios de A mulher de Ló