Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Drummond: menino antigo
Três poemas com recordações de infância do poeta. Aqui, o destaque é o
patriarca dos Andrade, que causa "terroramor".
O título "Família" é meu, apenas para "amarrar" os três
textos, que não estão juntos no livro de origem.
São textos originalmente publicados como crônicas no Jornal do Brasil.
Neste caso, o que está em jogo não é exatamente a arte poética, mas o
depoimento sobre uma época: o início do século 20 numa cidadezinha mineira
chamada Itabira do Mato Dentro.
Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002
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DISTINÇÃO
O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.
(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)
O BEIJO
Mandamento: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.
Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda —
tibum —
no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.
Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.
Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.
Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.
REVOLTA
Não quero este pão —
Quinquim atira
o pão no chão.
A mesa vira vidro, transparente
de emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.
O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.
Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.
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