Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Se você gostou do "Antigamente", no
boletim n. 7, aí está a parte final dessa deliciosa crônica.
Para traduzir expressões de antigamente que você não conseguir entender,
consulte a Seleta em Prosa e Verso, de Drummond (Ed. Record).
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ANTIGAMENTE, os
pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear
os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no
couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem tugir nem mugir.
Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois
levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava
aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que
não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart
calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo-d’água, se bem
que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é
que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia
muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho
diante de treteiro de topete: depois de fintar e engambelar os coiós, e
antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho
eram os filhos da Candinha: quem somava a candongas acabava na rua da
amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha
nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.
BOM ERA TER as costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão;
melhor ainda, ter uma caixinha de pós de perlimpimpim, pois isso evitava
de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus
fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no
nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no
dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a
mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia o doutor
pomada, todo cheio de nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era
um doutor da mula ruça, um pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que
começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das
nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por
uma tutaméia, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um
cascão de goiabada.
EM COMPENSAÇÃO, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo
vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo
com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do
degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o
pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o
testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está falando, o sangue-de-barata, o Dr.
Fiado que morreu ontem, o zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o
salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o
mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras... Depois de mil
peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo
na cerca, ou, simplesmente, a bota, sem saber como descalçá-la.
MAS ATÉ AÍ morreu Neves, e não foi no Dia de São Nunca de Tarde: foi
vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência,
e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?
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