Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Drummond: na praia, em pose que virou estátua em Copacabana
A crônica ao lado não está em nenhum livro de Drummond. É um tributo ao
compositor mangueirense Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), e tem
uma história curiosa. Foi publicada no Jornal do Brasil em
27/11/1980, três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não Falam".
Ao saber que Cartola estava
doente, Drummond decidiu escrever-lhe uma homenagem. "Em seus derradeiros
momentos de lucidez, em sua cama no hospital, Cartola ainda pôde lê-la,
transformando-a em sua última felicidade", conta o jornalista e pesquisador
musical Arley Pereira, autor do livro Cartola – 90 Anos.
Embora reservado e totalmente avesso às freqüentações públicas, Drummond
acompanhava com grande interesse as manifestações da cultura popular, o que
pode ser claramente observado nesta crônica.
Ele também ficou muito satisfeito, em 1980,
quando Martinho da Vila (com Rodolfo de Souza e Tião Graúna)
compôs para a escola da Vila Isabel o samba-enredo "Sonho de um Sonho",
baseado em poema homônimo de sua autoria (de Claro Enigma, 1951).
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Neste 20 de novembro, dia do herói Zumbi dos Palmares, com
esta crônica em que Drummond evoca os grandes Cartola, Pixinguinha e Carlos
Cachaça, estendo a homenagem a todos os artistas negros do país ― sem
esquecer, já que nosso foco é o texto, o mestre Machado de Assis.
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Mais uma vez, todos nós ficamos em débito com a colega
jornalista Marta Alves, por ter desentranhado das névoas do passado esta
delícia de crônica.
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Você vai pela
rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar
para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso
que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem
entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e
fica ouvindo.
Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de
discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na
Floresta (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a
atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei
Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação
de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um
novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a
germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a
garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.
A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como
dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como
bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um
distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro
não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro,
tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom
musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e
revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto
Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem
a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com
a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.
Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio
Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou,
aliás, com a sua participação eficiente:
Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola.
Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro
da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro,
representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao
gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o
maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o
que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa
população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.
* * *
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre
Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que
tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de
amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele
a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia
estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um
par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o
casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas
da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu,
nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo
ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de
qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e
pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi
o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba
o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como
ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma
companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a
sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da
poesia, essa iluminação.
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