Número 36

Segunda-feira, 25 de novembro de 2002 

"Só resta ao homem/ (estará equipado?)/ a dificílima dangerosíssima viagem/ de si a si mesmo." (C.D.A.)

  Drummond e a indesejada

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002



 

Desde cedo, o tema da morte freqüentou a poesia de Drummond. Ainda jovem, ele escreveu poemas de profunda maturidade sobre a grande sombra. Confira, por exemplo, os poemas "Morte no Avião" e "Os Últimos Dias", ambos de A Rosa do Povo (1945).

Aqui, dois poemas em que Drummond reflete sobre a "indesejada das gentes", como diria seu amigo Manuel Bandeira. O primeiro descreve o trabalho do moinho da morte, que tudo mói, inclusive a pedra que antes moía...

Mais impressionante ainda é "Como Encarar a Morte", no qual o poeta "visualiza" o fim da existência de cinco ângulos: de longe; a meia distância; de lado; de dentro; e (terrível!) sem vista.

Repare na rica sutileza das imagens para falar da indesejada sem nunca citar o nome dela: "o viajante sem identidade"; "o gás de um estado indefinível". É no trato de um assunto espinhoso como esse que se vê quem de fato merece o título de poeta.

 

MOINHO

A mó da morte mói
o milho teu dourado
e deixa no farelo
um ai deteriorado.

Mói a mó, mói a morte
em seu moer parado
o que era trigo eterno
e nem sequer semeado.

Da morte a mó que mói
não mói todo o legado.
Fica, moendo a mó,
o vento do passado.

        
••• o •••

COMO ENCARAR A MORTE


De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.


De lado

Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.


De dentro

Agora não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.


Sem vista

Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
"Moinho"
   In As Impurezas do Branco - José Olympio, 1973
"Como Encarar a Morte"
   In Corpo - Record, 1984
© Graña Drummond