Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Desde cedo, o tema da morte freqüentou a
poesia de Drummond. Ainda jovem, ele escreveu poemas de profunda maturidade
sobre a grande sombra. Confira, por exemplo, os poemas "Morte no Avião" e
"Os Últimos Dias", ambos de A Rosa do Povo (1945).
Aqui, dois poemas em que Drummond reflete sobre a "indesejada das gentes",
como diria seu amigo Manuel Bandeira. O primeiro descreve o trabalho do
moinho da morte, que tudo mói, inclusive a pedra que antes moía...
Mais impressionante ainda é "Como Encarar a Morte", no qual o poeta
"visualiza" o fim da existência de cinco ângulos: de longe; a meia
distância; de lado; de dentro; e (terrível!) sem vista.
Repare na rica sutileza das imagens para falar da
indesejada sem nunca citar o nome dela: "o viajante sem identidade"; "o gás
de um estado indefinível". É no trato de um assunto espinhoso como
esse que se vê quem de fato merece o título de poeta.
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MOINHO
A mó da morte mói
o milho teu dourado
e deixa no farelo
um ai deteriorado.
Mói a mó, mói a morte
em seu moer parado
o que era trigo eterno
e nem sequer semeado.
Da morte a mó que mói
não mói todo o legado.
Fica, moendo a mó,
o vento do passado.
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COMO ENCARAR A MORTE
De longe
Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.
O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.
A meia distância
Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?
Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.
De lado
Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.
Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.
De dentro
Agora não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.
Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.
Sem vista
Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.
Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.
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