Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
O poeta, aos 75 anos
Em 1984, às vésperas de completar 82 anos, o poeta decide
pendurar as chuteiras no ofício da crônica, depois de mais de seis décadas
de jornalismo.
Em carta ao presidente do Jornal do Brasil, o cronista afirma: "Sinto
que é hora de descansar e também de ceder espaço a outros que começam ou que
estão em fase de desenvolvimento de carreira".
M. F. Nascimento Brito, o presidente, respondeu à carta fazendo uma
contraproposta: em vez de escrever três crônicas por semana, Drummond
escreveria somente uma. O poeta agradece e reafirma sua intenção de não ter
"compromisso profissional com periodicidade certa".
Mas, como afirma no texto ao lado, ele se despede da crônica, não "do gosto
de manejar a palavra escrita". De fato, depois de deixar o JB, o
poeta, que morreria três anos depois, ainda publicou cinco livros e deixou
outros cinco prontos para o prelo.
O que chama a atenção nesse texto, além das idéias do escritor sobre a
arte de "cronicar", é a elegância da despedida. Em nenhum momento Drummond
resvala para um tom patético ou lamurioso. Ao contrário: mantém sempre o
alto-astral e simplesmente diz "ciao".
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Há 64 anos,
um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do
prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um
jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os
seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O
homem olhou-o, cético, e perguntou:
― Sobre o que pretende escrever?
― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e
de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a
fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha
Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de
Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.
Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou
o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que
na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem
melancolia, mas oportuno.
Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por
ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e
escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos
eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se
atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda
Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos
populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que
ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou
as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem
entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a
qualquer um, que são certamente as melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar
mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não
uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o
sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às
vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que
outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do
editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes
problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter,
responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem
que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico
etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender
de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou
comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma
espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não
ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da
fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um
cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo,
cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a
crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os
acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso
seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação
é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de
Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920?
duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado
a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns
anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não
ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”.
Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer
as descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis
décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do
que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor
implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das
notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma
página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a
reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou
revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas
grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ―
o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e o Jornal do
Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no mundo.
Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo,
alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que
ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a
palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital,
já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais
novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
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