Número 9

São Paulo, quarta-feira, 5 de março de 2003 

"As horas passam, os homens caem/ a poesia fica." (Emílio Moura)
 


Manuel Bandeira


Caros,

Para falar a verdade, não foi fácil escolher um poema de Bandeira. Poesia completa na mão, eu decidia por esse ou por aquele texto, e no final mudava de idéia afinal, a obra do pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968) é riquíssima. Até que chegou o Carnaval. Então, lembrei-me do livro de Bandeira (de 1919) com esse nome.

Passeei entre arlequins, pierrôs e colombinas, entre amores ingênuos e grossos bacanais (a festa é de Baco, não esqueçam). Entre os personagens — os cínicos, os tristes e os infinitamente apaixonados — escolhi a "Vulgívaga", essa infeliz que esconde a tristeza atrás de altas doses de cinismo. 

Talvez eu preferisse, de Bandeira, a "Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá", ou a "Tragédia Brasileira", aquela de Misael, funcionário público, e sua amada Maria Elvira. Ou, ainda, o incrível "Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal". Talvez eu preferisse dezenas de outros poemas, mas é Carnaval...

Fiquemos, então, com a "Vulgívaga". Agora, imagine o choque provocado por essa mulher de falas cruas em 1919! Observe a estupenda rima (conceba/Do— bêbado) no início do poema.

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Dica
A cantora Olivia Hime selecionou um punhado de poemas de Manuel Bandeira e pediu a compositores populares para musicá-los. As canções resultantes desse desafio são interpretadas pela própria Olivia no CD Estrela da Vida Inteira, de 1987. Entre os compositores estão Gilberto Gil, Francis Hime, Milton Nascimento, Dorival Caymmi e Joyce.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



Veja também sobre Manuel Bandeira os boletins:
- poesia.net 239
- poesia.net 255
 


 

O Carnaval de Bandeira

Manuel Bandeira

 




VULGÍVAGA
 

Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!

Não sei entre que astutos dedos
Deixei a rosa da inocência.
Antes da minha pubescência
Sabia todos os segredos...

Fui de um... Fui de outro... Este era médico...
Um, poeta... Outro, nem sei mais!
Tive em meu leito enciclopédico
Todas as artes liberais.

Aos velhos dou o meu engulho.
Aos férvidos, o que os esfrie.
A artistas, a coquetterie
Que inspira... E aos tímidos
o orgulho.

Estes, caço-os e depeno-os:
A canga fez-se para o boi...
Meu claro ventre nunca foi
De sonhadores e de ingênuos!

E todavia se o primeiro
Que encontro, fere toda a lira,
Amanso. Tudo se me tira.
Dou tudo. E mesmo... dou dinheiro...

Se bate, então como estremeço!
Oh, a volúpia da pancada!
Dar-me entre lágrimas, quebrada
Do seu colérico arremesso...

E o cio atroz se me não leva
A valhacoutos de canalhas,
É porque temo pela treva
O fio fino das navalhas...

Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!
 
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

•  Manuel Bandeira
    Estrela da Vida Inteira
   
José Olympio, 6a. ed, Rio de Janeiro, 1976