Ruy Espinheira Filho
Caros amigos,
"Para onde vamos é sempre ontem", diz um verso do poeta baiano Ruy Espinheira
Filho (1942-). Mesmo correndo o risco do reducionismo, é possível adotar esse
verso (há outros: por exemplo, "O que respiro é ontem") como um dos grandes
símbolos da poesia de Espinheira. Poeta da memória, ele constrói uma poesia
profundamente marcada pela infância e pela adolescência.
Ler a poesia de Espinheira é fazer uma viagem doce e amarga pelas lembranças
dele que, inevitavelmente, nos remetem às nossas lembranças. "Umas coisas valem
a dor da memória", considera o poeta.
Ao lado, dois poemas de Espinheira extraídos de seu livro Poesia Reunida
(Record, 1998): "Canção da Moça de Dezembro" e "Blind Borges". A "Canção" é um
poema belíssimo, pungente e que, acredito, tem bem a marca do poeta. Um poeta
que flagra em si mesmo a disposição para a convivência com um passado que não
passa:
Será sempre assim: este luar
da memória. E este rumor
do coração.
Mas o poeta não se restringe à memória. O soneto "Blind Borges" representa,
ao mesmo tempo, uma homenagem ao bruxo de Buenos Aires e uma profunda reflexão
sobre o nosso destino final.
Um abraço,
Carlos Machado
P.S.1 : O texto acima já estava escrito. Mas é preciso agradecer, de coração, à
gentileza do poeta Ruy Espinheira Filho, que autorizou, de bom grado, a
publicação de seu poema neste boletim e ainda me enviou uma foto digital.
P.S.2 : Cheguei, sozinho, à conclusão de que Ruy Espinheira Filho poderia
receber o epíteto de "poeta da memória". Mas não sou o primeiro. E o poeta, em
entrevista a Rodrigo de Souza Leão, reage a isso com a seguinte frase: "Então me
caberia perguntar: qual não é?"
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Veja também sobre Ruy Espinheira Filho o boletim:
- poesia.net 284
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O poeta da memória
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Ruy Espinheira Filho |
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CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO
A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos
se alguém mais há não me lembro.
O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda
dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso
em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.
E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.
E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!
E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos
sempre que sopra dezembro,
nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.
BLIND BORGES
La vasta y vaga y necesaria muerte.
Jorge Luis Borges: Blind Pew
A vasta e vaga morte, esse outro sonho,
não é só outro sonho: é a mais remota
ilha de ouro a que nossa derrota
nos leva, inexorável, sonho a sonho.
Latidos pelos cães, sonho após sonho,
sonhamos. Esta é a vida, a vela, a rota
do homem: sonhar. E em áurea praia ignota
sonha o que sonha o sonhador, que é sonho.
Isto é o que pulsa em nós: o ansiado ouro
— distante e aqui, no coração —, tesouro
cuja procura tece a nossa sorte;
rumo que a alma singra e sagra em ouro
até chegar enfim a esse tesouro
incorruptível que nos sonha a morte.
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