Número 44

São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 2003 

«O quanto perco em luz conquisto em sombra» (Carlos Pena Filho)
 

Marianne Moore
Marianne Moore,
aos 48 anos, em 1935


Caros amigos,

Marianne Moore, em vez de lápis,
emprega quando escreve
instrumento cortante:
bisturi, simples canivete.


Com esses versos, que abrem o poema "O Sim Contra o Sim", João Cabral de Melo Neto caracteriza o trabalho de Marianne Moore (1887-1972). De fato, a poesia dessa americana tem precisão cirúrgica, traço que se manifesta no apego ao específico e à palavra exata.

Marianne tem quase uma obsessão de fazer descrições perfeitas e usar o nome próprio de cada animal, de cada objeto. Esse rigor, associado a versos prosaicos, levou-a a ser considerada uma poeta para poetas. É verdade: seus métodos de composição estão entre os mais influentes (mas não entre os mais populares) na poesia americana do século 20.

Ao lado, você encontra duas amostras da poesia de Marianne. Primeiro, o poema "Os Peixes", no qual se destaca a precisão vocabular. Observe o uso que ela faz das cores: azul-corvo, oceano turquês, lírios verdes. A seqüência de objetos e movimentos é estonteante. Resulta um painel riquíssimo, mas que de fato parece exigir degustadores refinados.

A segunda amostra é o poema "Poesia". Esta é a versão curta do texto, que originalmente se estendia por duas ou três páginas. Basicamente, a artista reduziu o poema às duas primeiras frases. A tradução, competente, é de José Antonio Arantes, que está no livro Poemas (Companhia das Letras, 1991). Salvo engano, é a única coletânea de Marianne Moore  publicada no Brasil.

Um abraço,

Carlos Machado

 

 

Versos escritos com bisturi

Marianne Moore

 


OS PEIXES

 

vade-

ando negro jade.

     Das conchas azul-corvo um marisco

     só ajeita os montes de cisco;

          no que vai se abrindo e fechando

 

é que

nem ferido leque.

     Os crustáceos que incrustam o flanco

     da onda ali não encontram canto,

          porque as setas submersas do

 

sol,

vidro em fibras sol-

     vidas, passam por dentro das gretas

     com farolete ligeireza

          iluminando de vez em

 

vez

o oceano turquês

     de corpos. A correnteza crava

     na quina férrea da fraga

          uma cunha de ferro;  e estrelas,

 

grãos

de arroz róseos, mães-

     d'água tintas, siris que nem lírios

     verdes e fungos submarinos

          vão deslizando uns sobre os outros.

 

As

marcas externas

     de mau-trato estão todas presentes

     neste edifício resistente

          todo resquício material

 

de a-

cidente — ausência

     de cornija, machadadas, queima e

     sulcos de dinamite — teima em

          ressaltar; já não é o que era

 

cova.

Repetida prova

     demonstrou que ele pode viver

     do que não pode reviver

          seu viço. O mar nele envelhece.



peixes



THE FISH

wade
through black jade.
     Of the crow-blue mussel-shells, one keeps
     adjusting the ash-heaps;
          opening and shutting itself like

an
injured fan.
     The barnacles which encrust the side
     of the wave, cannot hide
          there for the submerged shafts of the

sun,
split like spun
     glass, move themselves with spotlight swiftness
     into the crevices —
          in and out, illuminating

the
turquoise sea
     of bodies. The water drives a wedge
     of iron through the iron edge
          of the cliff; whereupon the stars,

pink
rice-grains, ink-
     bespattered jelly fish, crabs like green
     lilies, and submarine
          toadstools, slide each on the other.

All
external
     marks of abuse are present on this
     defiant edifice —
          all the physical features of

ac-
cident — lack
     of cornice, dynamite grooves, burns, and
     hatchet strokes, these things stand
          out on it; the chasm-side is

dead.
Repeated
     evidence has proved that it can live
     on what can not revive
          its youth. The sea grows old in it.




POESIA
 

Também não gosto.

     Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a

                              [ gente acaba descobrindo

     nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.
 


POETRY

 

I, too, dislike it.
     Reading it, however, with a perfect contempt

                                  [ for it, one discovers in

     it, after all, a place for the genuine.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Marianne Moore
    In Poemas   
    Tradução e posfácio de
    José Antonio Arantes
    Companhia das Letras, São Paulo, 1991