Mário de Sá-Carneiro
Caros amigos,
"Sá-Carneiro não teve biografia: teve só gênio. O que disse foi o que viveu."
Essas frases de Fernando Pessoa resumem bem a vida de seu amigo e parceiro, o
poeta português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).
Filho único de pai rico, Sá-Carneiro ficou órfão de mãe aos dois anos de idade.
Infância difícil, adolescência angustiada. Mudou-se de Lisboa para Paris, em
1913, onde pretendia estudar direito. Manteve correspondência com Pessoa,
considerado seu melhor amigo. Nas cartas, discutia estética e expunha suas
angústias pessoais. Numa delas, anunciou que iria suicidar-se. Cumpriu. Tinha 26
anos.
A obra de Mário de Sá-Carneiro confunde-se com sua vida. Em seus versos, ele
expressa uma angústia permanente. Não é à toa que ele se autodenomina um
"castrado de alma" e lamenta:
"Hoje, de mim, só resta o desencanto / das coisas que beijei mas não vivi".
Em dois textos ao lado, "Quase" e "O Outro", o
poeta trabalha com a idéia do Eu e do Outro, que remete tanto ao desconhecimento
de si mesmo como à aspiração frustrada de ser diferente do que é. No poema
"Fim", revela-se outra faceta da personalidade de Sá-Carneiro: o narcisismo, que
está presente até na morte.
A vida e a poesia de Sá-Carneiro — um dos poetas mais importantes do modernismo
português — têm sido alvo de numerosos estudos. Eis alguns deles:
• Narciso em Sacrifício: A Poética
de Mário de Sá-Carneiro, livro de Fernando Paixão. Ateliê Editorial,
São Paulo, 2003.
• "Sá-Carneiro e Seus Duplos",
ensaio de Leyla Perrone-Moisés. In Inútil Poesia, Cia. das Letras, São
Paulo, 2000.
• "Mário de Sá-Carneiro: Zonas
Intermédias", ensaio de Maria Estela Guedes. In revista eletrônica
TriploV,
Portugal.
Um abraço,
Carlos Machado
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POESIA QUÂNTICA
«Quanto
mais precisamente a posição [de uma partícula subatômica] é determinada, menos
precisamente, no mesmo instante, seu momento [massa x velocidade] é conhecido, e
vice-versa.»
Werner Heisenberg,
1927
A frase acima é parte de um texto no qual o cientista alemão Werner Heisenberg
(1901-1976) enuncia o célebre Princípio da Incerteza
— concepção de enormes implicações
para a ciência física. Um dos motivos para essa incerteza, ou indeterminação,
está no tamanho minúsculo dos objetos observados —
um elétron, por exemplo. Os próprios
instrumentos utilizados para medir a posição ou a velocidade do elétron
interferem no comportamento da partícula.
Que os físicos me perdoem a imprecisão do que escrevi acima. Mas meu ponto de
chegada não é a física, e sim a poesia. Observem este trecho de um poema da
americana Emily Dickinson (usei-o
como dístico neste boletim):
A percepção de um Objeto
custa justo a perda do Objeto.
Emily (1830-1886),
à sua maneira e antes de Heisenberg, já sabia enunciar o Princípio da Incerteza!
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Eu não sou eu nem o outro
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Mário de Sá-Carneiro |
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QUASE
Um pouco mais de sol —
eu era brasa.
Um pouco mais de azul —
eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho —
ó dor! — quase
vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim —
quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de
ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol —
vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
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Um pouco mais de sol —
e fora brasa,
Um pouco mais de azul —
e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
(Paris, 13 de maio de 1913)
7
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(Lisboa, fevereiro de 1914)
FIM
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes —
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro...
(Paris, 1916)
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