Czeslaw Milosz
Caros,
O poeta polonês Czeslaw Milosz (1911-2004) foi um
homem com uma história pessoal marcada pelas reviravoltas políticas do século
XX. Nasceu onde hoje é a Lituânia e lá viveu até a juventude. Passou a infância
em meio às batalhas da Primeira Guerra Mundial, na frente russa. O pai era
engenheiro e construía estradas para o czar. Depois da guerra, sua cidade natal
passou a fazer parte da Polônia (o polonês era, originalmente, a língua de sua
família).
Durante a Segunda Guerra Mundial, Milosz estava em Varsóvia, combatendo os
nazistas. Com a formação da república socialista polonesa, ele se tornou adido
cultural em Washington. Desiludido com o stalinismo, pediu asilo político na
França em 1953. Lá, nesse mesmo ano, publicou o livro A Mente Cativa, que
criticava o Partido Comunista Polonês. A obra, naturalmente, foi censurada na
Polônia, onde circulava de forma clandestina.
Em 1960, Milosz assumiu a posição de professor de literatura na Universidade da
Califórmia, em Berkeley, e naturalizou-se americano dez anos depois. Poliglota —
dominava russo, polonês, inglês, latim, grego e hebreu —, ele traduziu poetas
como Shakespeare, Milton, Baudelaire e T.S. Eliot para seu idioma natal.
Em 1980 o poeta recebeu o Prêmio Nobel de literatura, o que elevou bastante sua
popularidade. Atualmente, uma pesquisa no Google com a chave “Czeslaw Milosz”
traz 114 mil resultados. Boa parte dos sites que fazem esse número são em
polonês. Milosz voltou para a Polônia em 1989.
Lá, sua popularidade é tanta que no monumento do sindicato Solidariedade em
Gdansk há três figuras: Lech Walesa, o papa João Paulo II e Milosz. O poeta
morreu na Polônia, em agosto de 2004, aos 93 anos.
E quanto à poesia de Milosz? Os poemas transcritos ao lado vêm da antologia
Não Mais, publicada em 2003 pela editora da Universidade de Brasília, com
seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Na
apresentação, os tradutores ressaltam bem a preocupação de Czeslaw Milosz em
perseguir a realidade em seus poemas: “Sou um poeta da realidade. / Digo que a
terra não é um eco, / Nem o homem um fantasma.”
Católico — como a maioria dos poloneses, conforme vimos agora com a morte
do papa —, Milosz declarou certa vez ao jornal The Washington Post
que era “um grande partidário da esperança humana”.
Observem a força dos versos finais do poema “Não Mais”, que deu título à
antologia brasileira: “Da resistência da matéria / O que se retém? Nada, quando
muito o belo. / Então devem nos bastar as flores da cerejeira / E os crisântemos
e a lua cheia.”
Apreciem também a elegância de “Janela” e “Dádiva”. Degustem, por fim, o
bom-humor da deliciosa “Descrição de si Mesmo Junto a um Copo de Whisky no
Aeroporto...”, escrito pelo poeta aos 89 anos.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
• • •
INVENÇÃO
RECIFE
Nesta
quarta-feira, 13 de abril, em Recife, realiza-se o lançamento da antologia
poética Invenção Recife Vol. 2. O trabalho tem apresentação do poeta e
ensaísta mineiro Fabrício Marques e a participação de Alípio Carvalho Neto,
Eduardo Diógenes, Frederico Barbosa, Jomard Muniz de Britto, Marcelino Freire,
Mário Hélio, Paulo Bruscky, Pietro Wagner, Sérgio Ricardo Soares e Siba Veloso.
Local: Teatro Hermilo Borba Filho
Rua do Apolo, 121 – Recife
Quando: 13/03/2005, 19 horas
• • •
|
Um poeta da realidade
|
Czeslaw Milosz |
|
NÃO MAIS
Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.
Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o
[ pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se
[ abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das
[ galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus
[ pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe
[ o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro
[ pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera
[ pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.
Montgeron, 1957
JANELA
Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à
luz.
Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de
fruto.
Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu
neste sonho.
Berkeley, 1965
DÁDIVA
Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de
[ madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse
[ possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena
[ invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.
Berkeley, 1971
DESCRIÇÃO DE SI MESMO JUNTO A UM COPO DE WHISKY NO
AEROPORTO, DIGAMOS EM MINNEAPOLIS
Meus ouvidos ouvem cada vez menos das con-versas, meus olhos vão ficando mais
fracos, mas não se fartaram.
Vejo suas pernas em minissaias, em calças com-pridas ou tecidos voláteis,
Observo uma a uma, suas bundas e coxas, pen-sativo, acalentado por sonhos pornô.
Velho depravado, é a cova que te espera, não os jogos e folguedos da juventude.
Não é verdade, faço apenas o que sempre fiz, compondo cenas dessa terra sob as
ordens de uma imaginação erótica.
Não desejo a estas criaturas, desejo tudo, e elas são como o signo de uma
convivência extática.
Não é minha culpa se somos feitos assim, metade contemplação desinteressada, e
metade apetite.
Se após a morte eu chegar ao Céu, lá deve ser como aqui, só que me terei
desfeito da obtusidade dos sentidos e do peso dos ossos.
Tornado puro olhar, sorverei ainda as proporções do corpo humano, a cor da
íris, uma rua de Paris em junho de manhãzinha, toda a incompreensível, a
incompreensível multidão das coisas visíveis.
(2000)
|