Gonçalves Dias
Caros,
A "Canção do Exílio", do poeta romântico maranhense Gonçalves Dias (1823-1864),
é o maior fenômeno de intertextualidade da cultura brasileira. Escrita em 1843,
em Coimbra, onde o poeta estudava, a canção transformou-se num ícone múltiplo.
Representa, antes de tudo, a saudade (e a idealização) da terra natal, um
sentimento universal e sem idade. Além disso, tornou-se a expressão do
nacionalismo num país que acabara de conquistar sua independência política.
Canto singelo de louvor à pátria, a canção gonçalvina é o poema mais citado na
literatura e na música popular brasileira. De quebra, trouxe para nosso
imaginário a figura do sabiá, pássaro também identificado com a nação
brasileira. Gonçalves Dias já o via como uma referência mítica, além do
substantivo comum. Tanto que escreve o sabiá com inicial maiúscula.
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A primeira publicação da "Canção do Exílio" no Brasil se deu em 1846, com o
lançamento do livro Primeiros Cantos. Na década seguinte, em 1849, o
poeta fluminense Casimiro de Abreu (1839-1860), outro romântico, publicou uma
imitação explícita da canção. É o poema homônimo "Canção do Exílio", que está em
seu livro As Primaveras. Aliás, Abreu escreveu duas canções do exílio,
ambas baseadas no poema de Gonçalves. Nesse caso, nem é preciso dizer que o
pastiche fica bem abaixo do original.
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Outra citação importantíssima da "Canção do Exílio" ocorre em 1909, quando o
poeta Osório Duque Estrada escreve uma letra para o Hino Nacional Brasileiro. A
música do hino, da autoria de Francisco Manuel da Silva, já existia desde 1822,
o ano da Independência. Mas não havia uma letra oficial para ela. Várias
tentativas foram escritas, mas resvalavam em defeitos como ofensas aos
portugueses ou bajulavam o imperador. Havia também letras diferentes cantadas
nas províncias. Afinal, em 1909, Duque Estrada escreveu o "Ouviram do", que foi
oficializado em 1922, às vésperas do centenário da Independência. Observe-se
que, no hino, dois versos de Gonçalves Dias estão entre aspas:
"Nossos bosques têm mais vida",
"Nossa vida" no teu seio "mais amores".
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O modernista
Oswald de Andrade, com a irreverência que lhe era própria, produz uma
paródia ao poema de Gonçalves Dias em seu "Canto de Regresso à Pátria". O
poema está no livro Pau-Brasil, dado a público em 1925. Diferente da
terra de Gonçalves Dias, a de Oswald tem "palmares" e se concretiza em São Paulo
e sua pujança cafeeira.
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Dois modernistas que vieram depois, os mineiros
Murilo Mendes e
Carlos
Drummond de Andrade, também revisitaram o canto gonçalvino. Murilo escreve
sua "Canção do Exílio", empregando o mesmo tom paródico-piadista de Oswald.
"Minha terra tem macieiras da Califórnia /
onde cantam gaturamos de Veneza", inicia ele. No final, declara saudades
da terra: "Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade / e ouvir um sabiá
com certidão de idade!"
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É de se observar que Oswald, urbano e cosmopolita, não fala no sabiá. A
ave é retomada por Drummond para escrever o que, em minha opinião, é o melhor
poema entre todos os inspirados na matriz de Gonçalves Dias. "Nova Canção do
Exílio" está em A Rosa do Povo, de 1945. A inflexão de
Drummond é sinceramente nostálgica e já não tem a acidez protomodernista dos
textos de Oswald e Murilo.
Outro aspecto interessante: o poema drummondiano se pauta por um registro
impressionista. Vejam os dois versos iniciais: "Um sabiá na / palmeira, longe".
O poeta lida com dois signos (sabiá e palmeira) que, já sabe, estão plantados na
imaginação do leitor. Então, ele apenas os enuncia. Em seu poema, o escritor
itabirano vai além do nacionalismo e da nostalgia da pátria. Ele discute sobre
os lugares míticos que criamos na imaginação, em geral associados à terra natal:
"onde tudo é belo / e fantástico: / a palmeira, o sabiá, / o longe". Aqui, ele
casa a canção de Gonçalves Dias com a "Invitation au Voyage", de
Charles Baudelaire. Em seu poema, o francês convida uma amiga a visitar
terras exóticas: "Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor" (tradução de
Ivan Junqueira).
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O poeta gaúcho
Mario Quintana (que completaria 100 anos em 30 de julho último), também
entrou na fila dos que homenagearam Gonçalves Dias. Em "Uma Canção", ele nega
tudo: a terra dele não tem palmeiras, não tem sabiá e nela as aves são
invisíveis. Depois, perplexo, ele se pergunta: como cantar a canção do exílio
estando na própria terra?
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Numa composição que revisita, ao mesmo tempo, o parodismo modernista e o
poema de Gonçalves Dias, o poeta paulista
José Paulo Paes constrói uma "Canção do Exílio Facilitada". O texto se
reduz a nove palavras. Verifica-se aí também a intenção humorística dos
modernistas. Mas há um dado a mais: a crítica histórico-social. Ao se referir a
"papá.../ maná... / sofá... / sinhá...", o poeta chama a atenção para a
privilegiada condição social dos poetas românticos exilados. O poema de José
Paulo Paes está no livro
Meia Palavra, de 1973.
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Representante da chamada poesia marginal dos anos 80, o poeta Antonio Carlos
Ferreira de Brito,
Cacaso (1944-1987), também meteu sua colher na panela da "Canção do Exílio".
Em andamento de blague (os poetas "marginais" readotaram o piadismo modernista),
ele mistura sabiá com tico-tico e sai pedindo licença poética em dois "Jogos
Florais". Esses textos de Cacaso foram escritos nos anos 70, mas se tornaram
conhecidos com o livro Beijo na Boca e Outros Poemas, de 1985.
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A música popular foi outro terreno para onde o sabiá de Gonçalves Dias estendeu
os seus gorjeios. As letras da Tropicália, movimento musical que cultivava
claras influências do modernismo oswaldiano, estão cheias de referências à
poesia pau-brasil e também à inescapável "Canção do Exílio". "Minha terra tem
palmeiras / Onde sopra o vento forte / da fome, do medo e muito / principalmente
da morte", canta Gilberto Gil em "Tropicália II", música de sua autoria, em
parceria com Torquato Neto.
Na MPB, o exemplo mais ilustre é a canção "Sabiá", assinada por Antonio Carlos
Jobim e Chico Buarque: "Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar
/ Foi lá e ainda é lá / Que eu hei de ouvir cantar / O meu sabiá".
A letra dessa composição tem o mesmo tom nostálgico do poema de Drummond. E,
infelizmente para nós, brasileiros, ela passou a ser um hino do exílio a que
foram forçados os brasileiros perseguidos pela ditadura militar. A ironia é que,
em 1968, a música era considerada "alienada". Ainda mais porque concorrera num
festival contra a engajadíssima "Caminhando, ou Para não dizer que não Falei de
Flores", de Geraldo Vandré.
No final do mesmo ano, os militares baixaram o AI-5, fecharam o Congresso e
levas de opositores ao regime — inclusive o cantor e compositor Chico Buarque —
começaram a deixar o país. Assim, o sabiá e a palmeira passaram a ser
identificados também com o exílio político.
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Paremos por aqui. Se quiséssemos fazer um levantamento das canções do exílio
derivadas da matriz de Gonçalves Dias, talvez fosse preciso escrever um livro.
Sei, por exemplo, que há poemas desse tipo escritos por poetas como
Cassiano Ricardo, Affonso Romano de Sant'Anna e Eduardo Alves da Costa. Este
último escreveu um poema, "Outra Canção do Exílio", no qual as palmeiras
gonçalvinas são transplantadas para o terreno futebolístico: "Minha terra tem
Palmeiras, / Corinthians e outros times / de copas exuberantes / que ocultam
muitos crimes". Drummond e José Paulo Paes, já citados, fizeram mais de uma
referência aos versos de Gonçalves Dias.
O poeta maranhense
Ferreira Gullar, recentemente, compôs uma "Nova Canção do Exílio" (veja-a ao
lado). Mas, ao contrário do que se espera, trata-se de um poema de amor. A amada
do poeta é que tem palmeiras e passarinhos.
E viva Gonçalves Dias, um poeta que, há 160 anos, consegue inspirar tanta gente!
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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GONÇALVES DIAS
Nascido em Caxias (MA), Antonio Gonçalves Dias estudou Direito
em Coimbra. De volta ao Brasil, foi professor no Rio de Janeiro e desenvolveu
outras atividades intelectuais. Foi o poeta romântico brasileiro mais influente
e também o que melhor dominou os recursos formais. Sofrendo de tuberculose,
Gonçalves Dias partiu para a Europa em 1862, onde ficou internado em estações de
cura francesas. Dois anos depois, ainda doente, morreu num naufrágio no litoral
do Maranhão, na viagem de retorno ao Brasil. As condições de sua morte foram
duplamente trágicas. Não teve forças para abandonar o camarote. E, pelo jeito,
os outros ocupantes do navio, trataram de salvar as próprias vidas. |
Canções do exílio
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Gonçalves Dias |
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Gonçalves Dias, 1846
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CANÇÃO DO EXÍLIO
Kennst du das Land, wo die Zitronen blühen,
Im dunklen Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht ich... ziehn.
[Conheces o país onde florescem as laranjeiras?
Ardem na escura fronde os frutos de ouro...
Conhecê-lo? Para lá, para lá quisera eu ir!]
Goethe (tradução de Manuel Bandeira)
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Coimbra, julho de 1843
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Casimiro de Abreu, 1859
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CANÇÃO DO EXÍLIO
Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
― Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!
Oh! Que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas,
Não exalas, meu Brasil!
Oh! Que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Que se mira,
Que se mira nos cristais!
Não amo a terra do exílio
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras
E as palmeiras tão gentis!
Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho;
Sem carinho
Sem carinho e sem amor!
Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.
Distante do solo amado
― Desterrado ―
a vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!
Lisboa, 1855
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Osório Duque Estrada, 1909
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HINO NACIONAL BRASILEIRO
(trecho)
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
"Nossos bosques têm mais vida",
"Nossa vida" no teu seio "mais amores".
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Oswald de Andrade, 1925 •••••
CANTO DO REGRESSO À PÁTRIA
Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
■ Murilo Mendes, 1930
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CANÇÃO DO EXÍLIO
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a
[ Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de
[ verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
■
Carlos Drummond de Andrade, 1945
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NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO
Um sabiá na
palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.
Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.
Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vida e
voltar
para onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
■
Mario Quintana, 1962 •••••
UMA CANÇÃO
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
Minha terra tem relógios,
Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?
Mas onde a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!
■
José Paulo Paes, 1973
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CANÇÃO DO EXÍLIO FACILITADA
lá?
ah!
sabiá...
papá...
maná...
sofá...
sinhá...
cá?
bah!
■
Cacaso, 1985
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JOGOS FLORAIS
Jogos Florais I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre
a água já não vira vinha
vira direto vinagre
Jogos Florais II
Minha terra tem palmares
memória cala-te já
Peço licença poética
Belém capital Pará
Bem, meus prezados senhores
dado o avanço da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com esses dois esses
que se escreve paçarinho?)
■ Ferreira Gullar, 2000
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NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO
Para Cláudia
Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos
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