Número 222 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 15 de agosto de 2007 

«A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 

Cruz e Sousa (1861-1898)
Cruz e Sousa


Caros,


Ironias da História: um dos poetas mais geniais no Brasil escravista do século XIX é justamente um filho de escravos. Falo do catarinense João da Cruz e Sousa (1861-1898), fundador e maior expoente do simbolismo no Brasil. Nascido em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, João da Cruz era filho de Guilherme da Cruz, escravo e mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, ex-escrava.

Guilherme da Cruz era escravo de Guilherme Xavier e Sousa, marechal e figura bem situada na capital da província de Santa Catarina. O marechal e sua esposa, dona Clarinda, sem filhos, assumiram a proteção do pequeno filho do escravo. João da Cruz aprendeu a ler na casa dos senhores, de quem também herdou o sobrenome Sousa.

O menino era um prodígio. Com oito anos, já escrevia poesia. Mais tarde foi aluno brilhante no Ateneu Provincial. Com cerca de 20 anos, o poeta passou a trabalhar no teatro. Não como ator ou autor, mas como "ponto", a pessoa que fica no fosso do palco para ajudar os atores a lembrar o texto. Alguns biógrafos dizem que ele não foi apenas ponto. Ou seja, oficialmente, sim; mas o poeta também subia ao palco para declamar poemas. Com o teatro, Cruz e Sousa teve a oportunidade de viajar de norte a sul do país. Ao mesmo tempo, escrevia para jornais e propagava o abolicionismo. Este, aliás, é um aspecto pouco destacado em sua biografia.

Cruz e Sousa chegou a ser nomeado promotor da cidade de Laguna, SC, mas não conseguiu assumir a função por preconceito dos políticos locais. Em 1890, bem no início da República, ele transfere-se em definitivo para o Rio de Janeiro, onde exerceria  atividade jornalística. Poeta excepcional, amealha amigos e admiradores, em especial outros poetas que aderem ao simbolismo. Em 1893, casa-se com Gavita, com quem teria quatro filhos.

O casamento nem chega a completar dez anos, pois o poeta morre de tuberculose em 1898. Mas se foi curto o tempo para a vida, foi o suficiente para profundos dissabores. Basta dizer que nesse ínterim Gavita enlouqueceu e retornou à sanidade.

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A poesia de João da Cruz e Sousa constitui um dos momentos altos da literatura brasileira. Criador delirante, Cruz desenvolveu, como nenhum outro entre nós, a lição dos simbolistas franceses. Uma das marcas de seus poemas é alternar, ou misturar, itens tomados por empréstimo da religião oficial — daí títulos como Missal, livro de 1893 — com o mais escancarado erotismo.

Leia-se, por exemplo: "Carnais, sejam carnais tantos desejos, / carnais, sejam carnais tantos anseios" ("Encarnação). Também vale observar o início deste outro soneto: "Ó carnes que eu amei sangrentamente, / ó volúpias letais e dolorosas" ("Dilacerações). Ou ainda: "Sentimentos carnais, esses que agitam / todo o teu ser e o tornam convulsivo..." ("Sentimentos Carnais"). Outro trecho: "Quisera ser a serpe veludosa / para, enroscada em múltiplos novelos, / saltar-te aos seios de fluidez cheirosa / e babujá-los e depois mordê-los..." ("Lubricidade") Todos esses exemplos são de Broquéis, outro livro de 1893.

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Outra marca da poesia de Cruz e Sousa é a musicalidade, que representa uma das pedras de toque do simbolismo.
Ouça-se, por exemplo estes versos:

Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.


O quarteto acima faz parte do longo poema "Violões que Choram, do qual transcrevo ao lado alguns excertos.

Também vale a pena relembrar a famosa estrofe inicial do poema "Antífona":

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
de luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...


Há também outro Cruz e Sousa, o poeta civil que defende a causa abolicionista. Trata-se de uma faceta que poucos conhecem. É desse Cruz e Sousa o soneto “Escravocratas”. Depois de invectivar os escravistas (“viveis sensualmente à luz dum privilégio”), ele lhes apresenta toda a sua vigorosa repulsa:

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!


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Quero também destacar a prosa poética de Emparedado, texto que representa um profundo e terrível desabafo do poeta diante das adversidades que enfrenta apenas em razão da cor de sua pele. Cruz percebe que, na luta contra o preconceito, não consegue contar nem mesmo com o apoio da ciência. De fato, no final do século XIX, floresciam, com foros de ciência, as mais estapafúrdias teorias racistas. Assim, ele se sente emparedado. Ironicamente, o poeta nasceu numa cidade chamada Desterro. Foi também um desterrado na sociedade. Transcrevo aqui dois trechos da prosa caudalosa e angustiada de Emparedado.


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Algumas indicações de leitura sobre Cruz e Sousa:


•  Biografia: Introdução a Cruz e Sousa, da Enciclopédia Simpozio. Apresenta um excelente apanhado sobre a vida e a obra do poeta.

•  Filme: Cruz e Sousa, O Poeta do Desterro, cinebiografia dirigida por Sylvio Back, com os atores Kadu Carneiro e Maria Ceiça nos papéis do poeta e de sua esposa Gavita.

•  Ensaio: Poesia versus racismo, de Alfredo Bosi. Publicado na revista Estudos Avançados, jan/abr 2002. Nesse ensaio, Bosi discorre sobre Cruz e Sousa e seu Emparedado.

•  Jornal: Especial Cruz e Sousa. Edição de A Notícia, de Joinville,SC.

•  Prosa poética. Texto completo de Emparedado.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

 

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ARTISTAS DO ABCD NA TV

Dica de televisão. A poeta Dalila Teles Veras está apresentando desde domingo último na RedeTV um quadro no programa ABCDMaior em Revista. São 5 minutos semanais de conversas com escritores e artistas da região do ABCD Paulista. Confira. O programa vai ao ar às 10 horas da manhã de domingo, na RedeTV, para todo o Brasil.

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20 ANOS SEM DRUMMOND

Nesta sexta-feira, 17 de agosto, completam-se 20 anos da morte do poeta Carlos Drummond de Andrade.


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Veja outros poemas de Cruz e Sousa no boletim
- poesia.net n. 271

O poeta do desterro

Cruz e Sousa

 


 

ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta, clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos, retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço...



O ASSINALADO

Tu és o Louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu'alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!



VIOLÕES QUE CHORAM...
(jan. 1897)

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.

(...)

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

(...)

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.

(...)

Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!

(...)

Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos...

Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras...

(...)



O ator Kadu Carneiro em cena do filme Cruz e Sousa O Poeta do
Desterro
, de Sylvio Back


CAVEIRA

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
            Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
de expressão aquilina e feiticeira,
onde os olfatos virginais, falazes?!
            Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
de curva leve, original, ligeira,
que é feito dos teus risos cristalinos?!
            Caveira! Caveira!! Caveira!!!

 

ESCRAVOCRATAS

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
ardentes do olhar — formando uma vergasta
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos a espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
da branca consciência — o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!



EMPAREDADO

(...)

Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!

Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?

(...)

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...

                               Leia o texto completo de Emparedado

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

•  Cruz e Sousa
    Poesia Completa
   
Fundação Catarinense de Cultura, 1981
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* Carlos Drummond de Andrade, "Passagem do Ano",
   in A Rosa do Povo (1945)