Augusto Frederico Schmidt
Caros,
Embora elogiado por alguns dos nomes de maior destaque no modernismo, o poeta
carioca Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) anda meio esquecido. Schmidt
nasceu numa família abastada do Rio de Janeiro e, aos 8 anos, ficou pobre com a
inesperada morte do pai, que então dilapidara a fortuna. Começou a trabalhar
desde cedo. Em 1924, transferiu-se para São Paulo, a fim de exercer a função de
caixeiro-viajante numa empresa de bebidas. Nessa época, travou contato com
intelectuais paulistas como
Mário e
Oswald de Andrade.
Em 1928, estreou na poesia com o livro Canto do Brasileiro Augusto Frederico
Schmidt. Dois anos depois, já estava de volta ao Rio de Janeiro, como
proprietário da Schmidt Editora. Essa empresa fez história ao publicar as
primeiras obras de autores como Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala),
Graciliano Ramos (Caetés), Jorge Amado (O País do Carnaval) e
Vinicius de Moraes (O Caminho para a Distância). A editora foi vendida em
1936, mas em 1945 Schmidt, ainda no papel de editor, financiou a publicação de
O Engenheiro, livro de estréia do poeta
João Cabral de Melo Neto.
Empreendedor, Augusto Frederico Schmidt certa vez escreveu: “Consegui o que todo
mundo acha uma contradição: ser poeta e homem de negócios” (revista O
Cruzeiro, 7/6/1958). De fato, ele tornou-se riquíssimo, envolvendo-se numa
pluralidade de empreendimentos. Investiu numa empresa de seguros, foi um dos
fundadores da Panair do Brasil e também criou um dos primeiros supermercados, o
Disco (Distribuidora de Comestíveis), no Rio de Janeiro.
Ao lado do empresário rico, há também o Schmidt político. Desde sua temporada em
São Paulo, nos anos 20, ele se envolvera com Plínio Salgado e outras figuras
ligadas ao conservadorismo católico e anticomunista. Influente, Schmidt
tornou-se eminência parda no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), para
quem escrevia os discursos. Schmidt é autor do slogan da campanha juscelinista:
“50 anos em 5”. Como diplomata, foi delegado do Brasil na ONU e embaixador na
Comunidade Econômica Européia. A influência de Schmidt se estendia até a
agremiações esportivas. Ele presidiu o Club de Regatas Botafogo (1941-1942) e
promoveu a fusão deste com o Botafogo Football Club, do que resultou o atual
Botafogo de Futebol e Regatas.
A POESIA
Num período de exaltadas paixões políticas, o rico e influente Schmidt ganhou
antipatias. Até recebeu um apelido: “o gordinho sinistro”. Muitos acreditam que
o poeta foi literariamente injustiçado em função de suas idéias conservadoras.
Não creio nessa hipótese. Embora reconhecida por nomes da estatura de
Drummond
e
Bandeira, sua poesia, como diria Jobim, não é de levantar poeira.
Schmidt escreveu muito. Sua Poesia Completa (1928-1965) é um volume de
700 páginas, que reúne 17 livros, incluindo dois póstumos. Mas seus poemas, sem
exceção, são textos em voz baixa, muito introspectivos, e marcados por temas
penumbrosos, como o amor ausente, a despedida e a morte. Estreando no mesmo ano
de Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter, e do poema "No Meio do
Caminho”, ele envereda por um rumo diferente: “Não quero mais o amor, / Nem mais
quero cantar a minha terra. / Me perco neste mundo. / Não quero mais o Brasil /
Não quero mais geografia / Nem pitoresco. // Quero é perder-me no mundo / Para
fugir do mundo".
Dificilmente um poeta com esses traços teria a mesma acolhida de outros mais
envolvidos com "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente". E não
vai aí nenhum juízo de valor. É natural: um cantor intimista, pelo simples fato
de ser intimista, não pode esperar o mesmo sucesso que uma banda de rock'n'roll.
Outro aspecto que não favorece a popularidade do poeta é o elevado grau de
repetição de seus poemas. Na introdução à poesia completa de Schmidt,
Gilberto Mendonça Teles reconhece: “os temas, praticamente invariáveis,
vão-se repetindo e se adensando pela força mesma da repetição”. Para Mendonça
Teles,Schmidt aplica as reiterações em todos os níveis: nas palavras, nos
versos, nas estrofes e chega mesmo aos poemas e livros. Ou seja, não é estranho
o leitor ser visitado por uma sensação de déjà vu, ao ler uma seqüência
de títulos do poeta.
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Na seleção ao lado, procurei pinçar alguns poemas menos sombrios do poeta. Em
minha opinião, Schmidt alcançou seus momentos mais expressivos no livro Fonte
Invisível, de 1949. Exemplos disso são os textos "Poema" (O Galo Branco
adormeceu) e "Que Lua Embranqueceu...". Neles se nota o excelente resultado que
o poeta consegue extrair das repetições. O lirismo também é envolvente: "O Galo
Branco adormeceu. / A noite em flor palpita. (...) O Galo Branco adormeceu. / E
as estrelas no céu amadurecem". Digno de um
Federico García Lorca.
Entusiasmado com Fonte Invisível, Drummond publicou no volume Viola de
Bolso (1952) o seguinte poema de circunstância, com o mesmo título do livro
de Schmidt:
"Fui à fonte de Schmidt / beber água, lá fiquei. / Quedava bem no limite / do
reino de onde-não-sei. // Na sua linfa sensível / água da mais pura lei, /
brilhava o raio invisível / do amor. Como esquecerei?"
Quatro anos depois da morte de Schmidt, o poeta de Itabira voltou a falar no
livro numa crônica no Jornal do Brasil: "O melhor de Schmidt jorra de uma
fonte invisível, oculta no ponto em que o poeta alcança finalmente farto
exercício com as palavras, e aí o etéreo substitui o compacto".
(Colhi essa frase do JB num artigo de Cecília Prada para a revista
Problemas Brasileiros, jul/ago 2006).
No Mafuá do Malungo (1948), livro também composto por poemas de
circunstância, Manuel Bandeira brinca com a riqueza de Schmidt:
"O poeta Augusto Frederico /
Schmidt, de quem dizem que está rico, / Foi homem pobre, certifico, / Mas o
poeta sempre foi rico".
Schmidt foi também cronista e escreveu uma autobiografia, publicada em 1948,
chamada O Galo Branco.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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O galo branco
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Augusto Frederico Schmidt |
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A PARTIDA
Quero morrer de noite —
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda
Quero morrer de noite.
Irei me separando aos
poucos,
Me desligando devagar.
A luz das velas envolverá meu rosto lívido.
Quero morrer de noite.
As janelas abertas.
Tuas mãos chegarão aos meus lábios
Um pouco de água
E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos.
Os que virão, os que ainda não conheço.
Estarão em silêncio,
Os olhos postos em mim.
Quero morrer de noite.
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.
Aos poucos me verei pequenino de novo, muito pequenino.
O berço se embalará na sombra de uma sala
E na noite, medrosa, uma velha coserá um enorme boneco.
Uma luz vermelha iluminará um grande dormitório
E passos ressoarão quebrando o silêncio.
Depois na tarde fria um chapéu rolará numa estrada...
Quero morrer de noite —
As janelas abertas.
Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo.
E quando todos souberem que já não estou mais
E que nunca mais volverei
Haverá um segundo, nos que estão
E nos que virão, de compreensão absoluta.
LEMBRANÇA
Todos os que estão neste cinema agora,
Neste cinema alegre,
Um dia hão de morrer também:
Nos cabides as roupas dos mortos
penderão tristemente.
Os olhos de todos os que assistem
as fitas agora,
Se fecharão um dia trágica e dolorosamente.
E todos os homens medíocres
se elevarão no mistério
doloroso da morte.
Todos um dia partirão —
mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo:
Os abastados e risonhos
Os estáveis na vida
Os namorados felizes
As crianças que procuram compreender —
Todos hão de derramar a última lágrima.
No entanto parece que os freqüentadores deste cinema
Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer
— Porque em toda a sala escura há um grande ritmo de
[ esquecimento e equilíbrio.
De Navio Perdido (1929)
COMPREENSÃO
Eu te direi as grandes palavras,
As que parecem sopradas de cima.
Eu te direi as grandes palavras,
As que se conjugam com as grandes verdades,
E saem do sentimento mais fundo,
Como os animais marinhos das águas lúcidas.
Eu te direi a minha compreensão do teu ser,
E sentirei que te transfiguras a ti mesmo revelada,
E sentirei que te libertei da solidão
Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível.
Quero descer até as tuas regiões mais desconhecidas
Porque és minha Pátria,
As tuas paisagens são as da minha saudade.
Quero descer ao teu coração como se descesse ao mar,
Quero chegar à tua verdade que está sobre as águas.
Quero olhar o teu pensamento que está sobre as águas
E é azul
Como este céu cortado pelas aves,
Como este céu limpo e mais fundo que o mar.
As tuas manhãs acordadas pelos galos.
Quero ver a tua tarde banhada de róseo como nuvens frágeis
[ tangidas pelos ventos.
Quero assistir à tua noite e ao sacrifício dos teus martírios
Oh!, estrela, oh! música,
Oh! tempo, espaço meu!
VAZIO
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.
DESPEDIDA
Os que seguem os trens onde viajam moças muito doentes com os
[ olhos chorando
Os que se lembram da terra perdida, acordados pelos apitos dos
[ navios
Os que encontram a infância distante numa criança que brinca
Estes entenderão o desespero da minha despedida.
Porque este amor que vai viajar para a última estação da
[ memória
Foi a infância distante, foi a pátria perdida, e a moça que não
[ volta.
De Canto da Noite (1934)
SONETO
Os laranjais em flor. Noites
estranhas
Em que o amor era flama e juventude.
Luas novas no céu, flores novas na terra,
Frutos para nascer, palpitando nas árvores.
Laranjais que a lua doce e quieta
Amadurecia com o seu sorriso enternecido;
Laranjais em flor que o vento amava,
Que o vento apertava nos seus longos braços;
Laranjais que já destes tantos frutos
— Dizei-me hoje: onde estão aqueles olhos
Cheios de mistérios e ternuras inéditas?
Dizei-me, árvores: onde estão aquelas mãos
De febre, aquelas mãos morenas e macias,
E aqueles seios nascendo no corpo em flor?
De Estrela Solitária (1940)
OUÇO UMA FONTE
Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.
É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.
É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.
É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.
É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.
É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!
ERA UMA SOMBRA CLARA
Era uma sombra clara
No dia azul.
Era um pequeno soluço
No coro imenso.
Era um fio de vida
Na primavera,
No mundo crescendo,
Na frutificação,
No reflorescimento
Dos seres,
Das árvores,
De tudo,
Era uma lágrima
No seio do mar.
Era um breve gesto de adeus
No movimento
Unânime.
POEMA
Como outrora — ouvi o ruído de portas
Se abrindo e uma voz debruçar-se
Sobre o sono.
Quem era, quem me acordava, assim
No centro do sono, no abismo do sono?
Seria Ismênia, cansada de esperar
No túmulo,
Cansada do esquecimento?
Seria Matilde, que se decidia
Depois do desdém, da recusa
E do abandono?
A voz me afastou do sono,
A voz me fez subir de repente
Do sono
Como de um poço.
Seria Lídia, essa que não amei e cantava,
Os braços robustos me enlaçando
E o corpo de planta?
Não sei; mais foi uma voz súbita
Como um vento fresco.
Uma voz acordando ecos
De outras e antigas vozes.
Uma voz, de repente, brincando.
Uma voz conhecida
E não ouvida longamente.
Uma voz olhando,
Uma voz sacudindo,
Uma voz úmida
Abrindo portas,
As portas de um mundo desaparecido.
POEMA
O Galo Branco adormeceu.
A noite em flor palpita.
O sopro da terra traz
O cheiro dos vergéis
E a exalação da vida,
Que faz crescer e mover-se
A cega natureza.
O Galo Branco adormeceu.
E as estrelas no céu amadurecem.
A luz se debruça sobre as campinas,
Sobre as águas nascendo
E o sobre o mar quieto e lívido.
O Galo Branco adormeceu.
O vento antigo
Afaga a sua crista de sangue.
Seu corpo claro, imóvel,
Repousa no seio do tempo.
O Galo Branco adormeceu.
Sua voz vermelha
Está fechada no sono.
Sua voz guerreira
Está cativa à espera
Das luzes primeiras da aurora.
O Galo Branco adormeceu
E nos rosais vão-se abrindo
As asas das rosas.
Os lírios tímidos oferecem
Ao noturno mistério
Os corpos virginais.
O Galo Branco adormeceu.
É a hora em que os sonhos
Caminham livres entre vapores.
QUE LUA EMBRANQUECEU...
Que lua embranqueceu os teus cabelos?
Não; foram muitas luas,
Luas de muitos feitios,
Luas hoje caducas.
Não foi só esta lua.
Foram muitas, tantas!
Não esta pejada lua, apenas,
Que descendo sobre os teus cabelos
Os tornou tão brancos!
Foram inúmeras luas de quem os céus
E o mar nem mais se lembram.
Muita água de lua
Lavou os teus cabelos,
Luas de velórios, magras e curvas,
Luas de bodas enfeitadas de rendas,
Luas viajeiras, que o vento parecia levar,
Como veleiros frágeis sobre as águas.
Luas de velórios, de noites brancas,
De doenças e agonias
Envoltas em véus.
Foram muitas luas, que tornaram
Brancos os teus cabelos.
Foram as luas dos primeiro bailes,
Dos primeiros amores.
Dos primeiros encontros humildes.
Foram as luas das vigílias,
Que te ajudaram a embalar,
Que te ajudaram a fazer dormir
Os frutos alheios que amaste,
com a doçura da tua maternidade irrealizada.
Foram muitas luas que fizeram assim
Brancos os teus cabelos.
De Fonte Invisível (1949)
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