Mario Quintana
Caros,
Os versos "Eles passarão... / Eu passarinho!", do gaúcho Mario Quintana
(1906-1994), hoje já circulam quase como um dito popular — aquela frase que
muitos repetem mas nem todos têm conhecimento do autor. Esses versos pertencem
ao "Poeminho do Contra".
Observem: "poeminho", e não poeminha. Trata-se
de uma invenção do grande Quintana, o poeta do lirismo quase puro, capaz de
agradar tanto a leitores especializadíssimos — a exemplo de Cecília Meireles,
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira —, como a milhões de admiradores
anônimos.
Não podia ser de outro jeito para um escritor que batizava seus
livros com títulos tão intrigantes e sugestivos como Baú de Espantos,
A Cor do Invisível, Da Preguiça como Método de Trabalho,
Esconderijos do Tempo e Apontamentos de História Natural.
A simples menção desses títulos já constitui uma experiência poética. Qual será
a cor do invisível? Como se estrutura esse maravilhoso método de trabalho
baseado na preguiça? Onde ficam os esconderijos do tempo? Quais espantos estão
guardados no baú de Quintana? Cada uma dessas perguntas constitui um deleite
prévio para quem se aproxima do livro.
•o•
Não sei se Quintana chegou a
definir em algum lugar o que entendia por “poeminho”. Mas não importa: é
possível intuir que o poeminho seja um poema curto condimentado com os temperos
da graça, ironia e pureza do lirismo quintaniano.
Com base nesse
critério fluido, selecionei na Poesia Completa dele um punhado desses
textos leves e graciosos que explicam e justificam a grande simpatia e acolhida
que o poeta recebeu em vida e continuará a receber durante muito tempo.
É verdade, porém, que o próprio Quintana sugere que o poeminho seja uma espécie
de cruzamento de poema com passarinho. É o que se pode extrair do penúltimo texto
da pequena antologia ao lado. Mas o passarinho, que passa voando à toa, só vira
poema depois de capturado pelo poeta e engaiolado no papel. Ai, sim,
materializa-se o poeminho.
Parte dos textos ao lado vem do "Caderno H", título que tem, por si só, uma
longa história. Quintana começou a usá-lo numa seção da Revista de São Pedro,
de Porto Alegre, em 1945. O livro Sapato Florido, de 1948, contém
material publicado naquela revista. A partir de 1953, o "Caderno H" passa a sair
no jornal porto-alegrense Correio do Povo. Vinte anos depois, o poeta
lançaria a primeira versão do livro Caderno H, que contém uma vasta
coleção de textos, em verso ou em prosa poética, abrangendo os assuntos mais
variados.
É indispensável lembrar que esta não é a primeira vez que o autor de Sapato
Florido comparece a este boletim. Ele já esteve aqui em 2004, na
edição n. 73.
Quintana dispensa comentários. Basta curti-lo, como um
bom vinho.
Evoé, Quintana!
Um abraço, e até mais.
Carlos Machado
•o•
O
verdadeiro imortal
O "Poeminho do Contra" também tem sua história. Mario Quintana,
sabe-se lá por quê,
candidatou-se três vezes à imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Na primeira
(em março, 1981), perdeu para Eduardo Portella, ex-ministro da Educação do
general-presidente João Figueiredo. Depois (em novembro, 1982), foi derrotado pelo
jornalista Carlos Castello Branco (1920-1993). Na última vez, a vaga foi para o
professor carioca Arnaldo Niskier.
Diante da insensibilidade dos acadêmicos —
que parecem votar com critérios como influência política, poder e prestígio
social (e não os méritos
literários)
—, Quintana desistiu. E brindou os que lhe atravancaram o caminho com
o delicioso e profético "Poeminha do Contra".
Eles passarão...
Eu passarinho!
•o•
poesia.net
entra em recesso
A todos os leitores do poesia.net desejo
um ano novo com muita saúde, paz e poesia.
O
boletim não circulará no fim do ano e também no mês de janeiro.
FELIZ
2014!
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Poeminhos do Quintana
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Mario Quintana
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POEMINHO DO CONTRA
Todos esses que
aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu passarinho!
De CH
SÓ
A coisa mais solitária que existe
é um solo de flauta.
De CH
Tarsila do Amaral, Cartão Postal
TIC-TAC
Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar
mortalhas.
De CH
RELÓGIO
O mais feroz dos animais domésticos é o relógio
de parede; conheço um que já devorou três gerações da minha família.
De CH
COISAS NUMERADAS DE UM A TRINTA E
CINCO
XIX
Um dia de chuva é bom para a gente comprar livros
de poemas... Quem perguntar por que, de nada lhe adianta comprar um livro de
poemas.
XXXII
Me lembro de um colega de ginásio que tirou
da sua própria cachola e escrevia em seus cadernos e livros, com letra
caprichada, o seguinte: "Estudo, és tudo!". Teve o fim que merecia.
De CH
DA ARTE PURA
Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de
uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu,
humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma
mulher nua e uma abóbora.
De CH
Tarsila do Amaral, A Caipirinha
BIOGRAFIA
Entre o olhar suspeitoso da tia E o olhar
confiante do cão O menino inventava a poesia...
De AHS
A OFERENDA
Eu queria trazer-te
uns versos muito lindos... Trago-te estas mãos vazias Que vão
tomando
a forma do teu seio.
De
ET
ANOTAÇÃO
PARA UM POEMA
As mãos que dizem adeus são pássaros Que vão
morrendo lentamente
De
AVH
HORROR
Com os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma
palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação.
De SF
SEMPRE QUE CHOVE
Sempre que chove Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva Vem sempre datado de 1779!
De
PV
Tarsila do Amaral, Natureza Morta com
Relógios
OS RETRATOS
O pior de
nossos retratos é que vão ficando cada dia mais jovens. E chega um dia em
que parecem nossos filhos... E a gente os olha comovidamente, como se
houvessem morrido há muito, sem plena mocidade. Os pobres-diabos!
De DPMT
O ASSUNTO
E nunca me perguntes o
assunto de um poema. Um poema sempre fala de outras coisas...
De DPMT
DO TEMPO
Nunca se deve consultar o relógio perto de um defunto. É uma falta de tato,
meu caro senhor... uma crueldade... uma imperdoável indelicadeza...
De
SF
?
Que artista teria inventado o nosso ponto
de interrogação? Ele já tem a forma de uma orelha que escuta.
De PG
IDADE
Estou nessa idade em que o juiz
consulta o relógio e as arquibancadas já vão se esvaziando...
De PG
O ESPELHO NO ESCURO
Um espelho no escuro
aproveita a solidão da noite para refletir, de fato.
De PG
HAIKAI DE OUTONO
Uma folha, ai, melancolicamente
cai!
De ACI
HAIKAI
Silenciosamente
sem um cacarejo a noite põe o ovo da lua...
De ACI
FÉ
Uma das coisas que não consigo absolutamente compreender são os que se
converteram a outras religiões. Para que mudar de dúvidas?
De CH
Tarsila do Amaral, Morro da Favela
ANOITECER
Da
chaminé da tua casa Uma por uma Vão brotando as estrelinhas...
De ACI
O POEMA
O poema é um objeto súbito. Os
outros objetos já existiam...
De
CH
APONTAMENTO PARA UM POEMA
As águas riem como raparigas à sombra verde-azul das samambaias.
De CH
PASSEIO
Oh! Não há nada como um pé depois do outro...
De SF
BAUDELAIRE
Baudelaire, fervoroso
adepto e puxa-saco de Satã, Meu Deus! Era demais até... Mas Deus
esperou pacientemente que ele morresse E, para vingar-se dele de uma vez
por todas, O mandou para o Reino dos Céus!
De VSD
ARTE POÉTICA
Esses poetas que tudo dizem
Nada conseguem dizer: Estão fazendo apenas relatórios...
De VSD
PAUSA
Às vezes, nos dias calmos, apenas se
nota uma leve ondulação na relva: são os cavalos do vento que estão
pastando.
De Poemas para a
Infância
QUE HAVERÁ NO CÉU?
Se não houver cadeiras de balanço no Céu...
que será da tia Élida, que foi para o Céu?
De SF
CLOPT! CLOPT!
É a ruazinha que tosse, tosse, engasgada com o homem da muleta.
De SF
UMA VACA
Sim, uma vaca —
uma abençoada vaca — muge... O seu mugido é um rio de veludo morno.
De CH
O DESINFELIZ
Sua vida era um tango argentino.
De SF
O PRINCÍPIO
Se antes era o Nada, como já poderia haver
Alguém para tirar dele o mundo?
De CH
O OUTRO MUNDO
Por
favor, deixa o Outro Mundo em paz! O mistério está aqui.
De CH
Tarsila do Amaral, O Mamoeiro
POEMA
Oh! aquele menininho que dizia "Fessora, eu posso ir lá fora?" mas
apenas ficava um momento bebendo o vento azul... Agora não preciso
pedir licença a ninguém. Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento. O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.
De AVH
FATALIDADE
Em todos os velórios há sempre uma senhora gorda que, em determinado
momento, suspira e diz:
— Coitado! Descansou...
De SF
UMA
ESTATÍSTICA
As crianças, sem um tiro aliás, e isso é que
tornava o caso ainda mais espantoso, morriam mais do que índios nos
filmes norte-americanos, e quando a gente acaso perguntava, para se
mostrar atenciosos "Quantos filhos a senhora tem, comadre?" A comadre
respondia, com ternura: "Eu tenho quatro filhos e nove anjinhos".
MENTIRA?
A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
De SF
PASSARINHO
Sempre me pareceu que um poema era algo assim como
um passarinho engaiolado. E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um
meticuloso cuidado que nem todos têm. Poema não se pega a tiro. Nem a
laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o mata. É preciso esperá-lo
com paciência e silenciosamente como um gato.
Ora, pensava eu tudo
isso e o céu também, quando topo com uns versos de Raymond Queneau, que
confirmam muito da minha cinegética transcendental. Eis por que aqui os
traduzo, ou os adapto, e os adoto, sem data venia:
Meu Deus,
que vontade me deu de escrever um poeminho... Olha, agora mesmo vai
passando um! Pst pst pst vem para cá para que eu te enfie na fieira
de meus outros poemas vem cá para que eu te entube nos comprimidos de
minhas obras completas vem cá para que eu te empoete para que eu te
enrime para que eu te enritme para que eu te enlire para que eu te
empégase para que eu te enverse para quo eu te emprose vem cá...
Vaca! Escafedeu-se.
De AVH
CALIGRAFIAS
Delícia de olhar no céu os v v v dos voos distanciando-se.
De AVH
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2013
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• Mario
Quintana Poesia Completa
Nova Aguilar, 1a. ed., 1a. reimpr., Rio de Janeiro, 2006
Siglas dos livros originais:
SF - Sapato Florido (1948)
CH - Caderno H (1973) AHS - Apontamentos de História
Sobrenatural (1976)
AVH - A Vaca e o Hipogrifo (1977) PV - Preparativos de Viagem (1987)
DPMT - Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)
PG - Porta Giratória (1988) ACI - A Cor do
Invisível (1989) VSD - Velório Sem Defunto
(1990)
______________ * Emily Dickinson, trad. de José Lira, in A Branca Voz da
Solidão
______________ Todas as imagens são pinturas da
modernista Tarsila do Amaral (Capivari-SP, 1886-São Paulo-SP, 1973)
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